A morte é um grande catalisador para as mudanças. A exploração deste arquétipo é a mola propulsora de A Primeira Morte de Joana, segundo longa da diretora gaúcha Cristiane Oliveira, obra que acompanha o crescimento e a descoberta da sexualidade de uma menina de 12 anos.
A trama é ambientada em 2007, na cidade litorânea de Osório, no interior do Rio Grande do Sul. Joana (papel de Letícia Kacperski) acaba de perder a tia-avó, Rosa, aos 70 anos. Era com a tia que a menina ficava enquanto a mãe e a avó trabalhavam. Toda a tríade de mulheres (mãe, avó e tia) eram artesãs no pequeno município, em que a presença de imigrantes alemães é muito forte.
Com a perda da tia, Joana começa a se questionar sobre os vácuos que restaram. A tia jamais se casou. Ela nunca teve namorado? Por quê? Ela era virgem? As pequenas obsessões da adolescente, de certa forma, vão se tornando as muletas em que ela se apoia para lidar com um mundo repleto de mudanças.
A mais óbvia é a de idade, e dos conflitos que surgem com a chegada da adolescência e seus mistérios assustadores. Sua melhor amiga, Carolina (Isabela Bressane), também parece carregar seus próprios segredos, como uma homossexualidade latente, ainda que relativamente bem resolvida. Filha de pais que estão separados fisicamente (a mãe mora na Alemanha), ela acaba representando, para os olhos da pequena cidade conservadora, um perigo para a comunidade: a de que ambas as amigas se descubram gays.

Mas o aspecto mais vivo e pulsante de A Primeira Morte de Joana são as nuances que se desenrolam entre esta espécie de trindade formada pela filha, a mãe e a avó. Três mulheres entrelaçadas pela essência do feminino, mas, de alguma forma, sofrendo os impactos do conservadorismo vigente.
O aspecto mais vivo e pulsante de A Primeira Morte de Joana são as nuances que se desenrolam entre esta espécie de trindade formada pela filha, a mãe e a avó.
A mãe, Lara (Joana Vieira), julga a avó, Norma (papel excelente vivido por Lisa Becker) por ainda “ceder” aos seus desejos e procurar homens nos bailes gaúchos da região. Ela define a tia morta, supostamente imaculada, como uma espécie de santa, uma mulher de “classe” por não ter cultivado os seus impulsos. Já a avó, mais liberada, julga a própria filha por ser aproximar de um fornecedor de farinha frequentador de “batuque” (forma genérica pelas quais as religiões afro-brasileiras são chamadas no Rio Grande do Sul).
Em meio a tudo isso, elas também lidam com a emergência de uma nova maturidade da filha adolescente e do novo mundo que se prenuncia no horizonte, com a instalação de um parque eólico em Osório, com grandes “cataventos” que passam a compor a paisagem local.
A delicadeza de um filme sobre o crescimento e o feminino
A Primeira Morte de Joana consolidou uma bela carreira nos festivais de cinema, conquistando vários prêmios. Dentre eles, está o de Melhor Filme pelo Júri da Crítica, Melhor Fotografia e Melhor Montagem no 49º Festival de Gramado de 2021.
A fotografia, aliás, é um dos grandes trunfos desta obra delicada, baseada em cores pálidas e distantes, que conseguem criar uma atmosfera que é ao mesmo tempo poética e sufocante. Traduz-se em cena a angústia de uma vivência no interior em que o entorno parece limitar boa parte das possibilidades de uma adolescente que procura maneiras de reconhecer – e seguir – os próprios desejos.
Há cenas bastante impactantes (ainda que de modo sutil) que restam na memória do espectador e trazem muita força ao longa-metragem. Elas envolvem, por exemplo, uma breve espiada num encontro sexual ou nos momentos em que as duas amigas, Joana e Carolina, dividem o silêncio a partir de um sopro, remetendo aos cataventos que as cercam. Um filme belíssimo.
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