“Todo mundo mata aquilo que ama.” A célebre frase do escritor e dramaturgo irlandês Oscar Wilde se transforma no refrão de uma canção entoada por Jeanne Moreau em Querelle, derradeiro filme do diretor Rainer Werner Fassbinder, um dos três grandes nomes do chamado Novo Cinema Alemão, surgido entre as décadas de 1960 e 1970, ao lado de Werner Herzog (de Fitzcarraldo) e Wim Wenders (de Asas do Desejo)
O estribilho, cantado em tom de fatalismo melancólico e com um certo conformismo pela estrela francesa de Jules e Jim – Uma Mulher para Dois, resume bem a força que move o protagonista da trama, um marinheiro amoral e destrutivo criado pelo escritor maldito Jean Genet (1910-1986), resgatado da marginalidade por Jean-Paul Sartre. Em Genet e sua obra, o existencialista viu uma força de resistência a tudo que fosse conformista, conservador e hipócrita. Esses traços fazem dele um autor que merece ser lido em tempos conservadores e reacionários como os que estamos vivendo hoje.
Genet e Fassbinder tinham muito em comum. O cineasta bávaro era homossexual, depressivo e morreu em 1982, vítima de uma overdose suicida. Seu legado para a produção da segunda metade do século 20 é inegável: renovou o cinema alemão ao subverter o melodrama, o chamado filme sobre e para mulheres, e falou, como poucos, de sua pátria. As personagens femininas que levou à tela – sobretudo Maria Braun, Veronika Voss, Petra Von Kant e Lola – respiram, amam e sofrem como a Alemanha do pós-Guerra, uma ferida exposta, purulenta, no seio da humanidade.

A principal fonte de inspiração formal de Fassbinder foi a fabulosa obra do diretor Douglas Sirk, mestre do gênero melodramático e autor de clássicos como Imitação da Vida e Palavras ao Vento. De Sirk, “copiou” o apreço pelas heroínas femininas, o visual sofisticado e, principalmente, o alto teor de crítica social escondido sob o disfarce do dramalhão.
A principal fonte de inspiração formal de Fassbinder foi a fabulosa obra do diretor Douglas Sirk, mestre do gênero melodramático e autor de clássicos como Imitação da Vida e Palavras ao Vento.
Em Querelle, no entanto, Fassbinder deixa as mulheres de lado para focar em um personagem masculino radical. Devasso, ele não teme a escuridão, a dor e a morte – e mergulha na sordidez com um fervor quase religioso, como se consciente todo o tempo de seu destino trágico. Quem o interpreta é o ator norte-americano Brad Davis, revelado pelo premiado O Expresso da Meia-Noite (de Alan Parker) e morto em 1991, vítima de complicações decorrentes da aids.
Lançado postumamente, Querelle nada tem de naturalista: é altamente estilizado. Rodado inteiramente em estúdios, é propositalmente teatral e rebuscado visualmente, ao mesmo tempo artificial e visceral, seguindo uma tendência presente em outros filmes da época, como O Fundo do Coração (1982), de Francis Ford Coppola, e A Lua na Sarjeta (1983), de Jean Jacques Beineix. Para apreciar o filme, talvez seja preciso conhecer melhor a obra ou mesmo a biografia de Genet, artista que nunca abdicou da marginalidade e que falava em “assassinato como um ato santificado”.
Respeitoso à obra do escritor e dramaturgo, Fassbinder assume a ambiguidade de seu texto, sempre buscando defender as semelhanças entre sentimentos aparentemente opostos como amor e morte; humilhação e ternura; dor e prazer; e desejo e desprezo. O resultado desse encontro entre dois autores tão provocadores e viscerais é uma experiência cinematográfica da qual não se sai ileso.
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