Passava um pouco das oito horas da noite quando descia as escadas rolantes do Shopping Crystal em direção à entrada do Espaço Itaú de Cinema, onde aconteceria a exibição do longa de abertura do 4º Olhar de Cinema. O local já estava tomado de gente. Cabeludos, carecas, cineastas, estudantes, público em geral, todos se amontoavam no pequeno espaço entre o portão do cinema e o Café da Esquina.
O clima era bastante animado, as conversas um tanto frenéticas. William Biagioli, curador da mostra Olhar Retrospectivo, corria de um lado para outro com cabos, numa agitação bem típica de quem procurava se atentar aos mínimos detalhes. Entre risos e abraços, mesmo que por momentos um pouco tímidos, Marisa Merlo e Aly Muritiba confraternizavam com as pessoas que, sem dúvida alguma, estavam ali motivadas pelo esforço de todos da produção do festival em concretizar aquilo que lá acontecia.
Me embrenhei no meio da multidão, também agitado e um tanto tímido. Os olhos pareciam todos saltar para mim, como se meu semblante denunciasse que não era alguém do cinema. Sempre tive essa sensação com a turma das artes. Segui em frente, deveria demonstrar confiança e assim o fiz. Esbarrei com Aly que, acredito eu, pela correria, não me reconheceu. Nosso abraço foi enviesado, algo torto. Salvador Dalí me entenderia.
Próximo do horário combinado, às oito e meia da noite, todos se encaminharam para as salas. As três estavam completamente tomadas. Me dirigi até a três e, lá dentro, até meu assento. Fila C, cadeira número 8. Ao entrar, novamente me senti impactado com a cena a que assistia. Não é das coisas mais comuns ver uma sala de cinema lotada, repleta de pessoas dos mais diferentes perfis, ávidas por assistir ao longa de estreia. Este, aliás, era um documentário da dupla portuguesa Joaquim Pinto e Nuno Leonel. Pinto levou um dos prêmios do festival no último ano.
Pontualmente às oito e meia, Aly Muritiba pega o microfone e agradece, educada e pausadamente, cada um dos apoiadores do festival. Não esquece, é claro, de também agradecer ao público. Para quem conhece o diretor e produtor, era nítido, pelo tom de sua voz, que a tensão tomava conta dele. Naquele instante, Muritiba, ali, era maior. Ele era o festival e o festival o era.
Rabo de Peixe foi uma escolha acertada. Havia nela, ao menos no meu modo de ver as coisas, uma analogia direta com a própria história do Olhar de Cinema. No longa, Joaquim e Nuno são diretores e personagens. Claro que o foco não era neles, mas sim no retrato de uma comunidade de pescadores dos Açores. Antes do início, uma mensagem dos diretores em vídeo, já que não puderam comparecer. Assim como o documentário, a saudação foi singela, tocante, chegando a confundir-se com a própria obra.
Rabo de Peixe, assim como o Olhar de Cinema, não era de fácil digestão. O filme não procurava entregar um conteúdo mastigado e palatável ao espectador. Como bem disse o já falecido diretor Eduardo Coutinho, a expressão máxima do documentário é a possibilidade de legitimar o outro. Cada uma das pessoas que lá estavam na noite de ontem, de alguma forma, legitima o Festival, os diretores, os pescadores retratados na obra e a si próprio.
Cada uma das pessoas que lá estavam na noite de ontem, de alguma forma, legitima o Festival, os diretores, os pescadores retratados na obra e a si próprio.
Por mais de uma vez me senti como num estádio de futebol, e não no sentido ruim. O público aplaudia, ria, chorava. Muitos arqueavam o tronco para a frente do assento, como fazem nos campos de futebol ao prenúncio de um gol ou uma jogada de perigo. E, ao contrário do que poderia parecer, essa sensação enriquecia a experiência de estar ali.
Eis que em um momento me vi entregue. Também fazia parte daquela hinchada. Olhava as horas no relógio, na torcida para que o tempo estacionasse e aquela sensação pudesse permanecer. Fazia o que a vida me permitia. Eternizava, mentalmente, tudo que podia, até que uma hora acabou. Palmas, assovios e outras manifestações pouco típicas de salas de cinema. Eu entendia o que aquelas pessoas estavam sentindo.
Lembrei então do grupo português Xutos & Pontapés. Uma de suas mais belas canções, “O Homem do Leme”, conversava comigo e com minhas impressões, não apenas do longa Rabo de Peixe, mas de tudo que vivi ao longo das mais de duas horas. E como disseram Joaquim Pinto e Nuno Leonel, viver sem presente não significa viver sem memória. Nos tornamos, ao menos até dia 18, enfim, espectadores.
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