Por Cristiano Castilho*, especial para Escotilha
É impossível lembrar de um personagem sorrindo durante as duas horas e trinta e seis minutos de duração de O Regresso. O novo filme de Alejandro González Iñárritu, vencedor do Oscar 2015 por Birdman, é a exposição de um martírio sem fim que, ao buscar compreender os limites do que é humano através de uma jornada vingativa, justifica toda sua pungente carreira.
Porque não há mais como analisar um filme de Iñárritu como somente outro filme de Iñárritu. Fosse assim, O Regresso seria um épico moderno baseado em uma história real com cenas impressionantes e uma câmera esperta. Mas o mexicano se interessa pela significância da sobrevivência mesmo quando ela parece não mais fazer sentido. Foi assim em Babel, Biutiful, Amores Perros, principalmente, e até em Birdman, se entendermos a aceitação da decadência como força-motriz.
Vencedor do Globo de Ouro e recordista de indicações ao Oscar 2016 (12), o filme é baseado na história relatada em livro pelo escritor Michael Punke. Leonardo DiCaprio interpreta Hugh Glass, caçador de peles que viveu no norte dos Estados Unidos entre 1780 e 1833. A região era coabitada por índios pawnee e sioux. E ninguém se dava bem com ninguém.
Porque não há mais como analisar um filme de Iñárritu como somente outro filme de Iñárritu.
Glass é um dos líderes de uma expedição de caça, mas se separa do grupo após ser atacado por uma ursa gigantesca, numa das cenas mais impressionantes do cinema contemporâneo. Glass é acompanhado por seu filho, por um fiel escudeiro e por Fitzgerald, personagem de Tom Hardy. É ele quem prega uma peça em Glass (sem spoilers!) e faz com que a jornada de vingança do filme, o regresso, enfim, comece.
Iñárritu tinha na mão uma história potencialmente banal. Mas, com seu poder de direção, faz de um possível embuste um filme ao mesmo tempo preciso e exuberante. As atuações ultrarrealistas (DiCaprio irá ganhar o Oscar praticamente sem abrir a boca), a fotografia cinzenta em contraste com a câmera na mão, enérgica, as locações embasbacantes e a trilha de Hildur Guonadóttir (Sicario) convergem para que a experiência em assistir O Regresso seja explicitamente dura embora, de uma maneira mais subjetiva, redentora.
Afinal, qual a diferença entre uma ursa que quer defender seu filhote e um caçador de peles que quer proteger seu filho? Pouco a pouco, Iñárritu nos põe em contato com o que há de animalesco em nós mesmos. Há discussões paralelas sobre religião, impulso principal para as atrocidades cometidas por Fitzgerald – qualquer semelhança com o que acontece por aí não é coincidência – e filosóficas, com a releitura condensada do mito do “bom selvagem”, de Jean-Jacques Rousseau (1712-1788). Aliás, a cena-resumo é essa: um índio enforcado cuja placa no pescoço diz: “nous sommes tous des sauvages” – “somos todos selvagens”.
O Regresso poderia ser melhor. Mas infinitamente pior se não estivesse nas mãos de Alejandro González Iñárritu, um cara que entende a vida como ato de sobrevivência e, por isso mesmo, a vingança como algo que não nos cabe.
* Cristiano Castilho é formado em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pós-graduado pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL).
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