O grego Yórgos Lanthimos é um daqueles cineastas cuja obra, independentemente de você gostar ou não dela, impacta, afeta. Em 2019, com o drama histórico A Favorita, que deu o Oscar de melhor atriz à britânica Olivia Colman, ele deixou de ser, em certa medida, um diretor de alcance mais restrito ao circuito dos festivais e mostras, para ganhar maior visibilidade. Ainda que, com seus trabalhos anteriores, como O Lagosta (2015) e Dente Canino (2009), ele já tivesse conquistado a atenção da crítica internacional. Hoje falarei sobre seu penúltimo longa-metragem, O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017), pelo qual venceu o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes, disponível no canal de streaming Amazon Prime.
O filme é uma espécie de fábula cautelar moral. Conta a história de Stephen Murphy, um cardiologista consagrado (Colin Farrell, também astro de O Lagosta), que vive uma vida aparentemente sem defeitos com a esposa oftalmologista, Anna (Nicole Kidman), e com dois filhos, uma adolescente (Raffey Cassidy) e um garoto (Sunny Suljic). Tudo na vida da família é metódico, controlado, tanto que, quando conversam, nunca alteram o tom, evitando vastas emoções, em uma rotina que beira o robótico, o cirúrgico. Há, no entanto, uma nota dissonante, que em princípio é sutil, mas aos poucos vai interferindo no andamento da orquestração previsível da vida familiar.
Murphy, por uma razão que aos poucos será revelada ao espectador, mantém, com regularidade, contato com Martin (Barry Keoghan), filho de um ex-paciente. A relação entre os dois é, no mínimo, estranha. De um lado, o médico demonstra zelar pelo bem-estar do garoto, embora nunca pareça estar realmente à vontade em sua companhia. De outro, o rapaz dá amostras de ter por Stephen, mais do que afeto, uma certa obsessão, que o levará a se aproximar perigosamente da família do cardiologista.
Lanthimos faz questão de estender o tom monocórdio dos diálogos e da própria narrativa, como se estivesse preparando uma grande fratura, uma disrupção, que de fato virá.
Lanthimos faz questão de estender o tom monocórdio dos diálogos e da própria narrativa, como se estivesse preparando uma grande fratura, uma disrupção, que de fato virá. Quem conhece o seu cinema, reconhece alguns dos traços mais marcantes. Por meio de lentes e de seus enquadramentos, nos quais os personagens parecem estar sempre minimizados, sufocados pelo ambiente, pela estrutura social ao seu redor, há uma constante sensação de claustrofobia onipresente, ainda que por vezes apenas insinuada. Há algo que aprisiona o que há de humano. A tal falsa perfeição que se anuncia no início da trama tem a ver com isso.
O premiado roteiro de Lanthimos e Filippou é fundamental na construção lenta, porém progressiva, dessa tensão, em ritmo de horror psicológico: é pensado para nunca deixar o público aliviado. Ainda que nada seja dito de forma explícita, forçando espectador a buscar em sua cabeça explicações para o que estaria acontecendo na tela.
É muito interessante como os diálogos vão, muito aos poucos, ganhando dramaticidade em seu tom, à medida em que os personagens, apequenados e solitários no meio dos planos que os oprimem, entram em desespero. Só então nos damos conta de que o filme é a agoniante história de um ajuste de contas que beira o surreal – e o cármico.
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