A recepção de Saltburn, o segundo filme da cineasta britânica Emerald Fennell, tem gerado, até o momento, divergências de opinião significativas. O longa-metragem, disponível no Amazon Prime Vídeo, explora a intrusão de um indivíduo de classe média em uma família inglesa extraordinariamente rica e aristocrática.
De um lado, há espectadores e a maioria dos críticos que categorizam o filme como uma confusão exuberante, mas autocomplacente de provocação até certo ponto vazia. Por outro lado, existem aqueles que o veem como um thriller erótico envolvente e bem-sucedido, repleto de momentos impactantes em uma releitura de Fennell de obras como Teorema, obra-prima do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, do romance clássico Brideshead Revisited, de Evelyn Waugh, e, por fim, dos livros e das adaptações para o cinema de O Talentoso Ripley, livro da norte-americana Patricia Highsmith.
Embora haja consenso sobre a estética exuberante e atraente de Saltburn, imagens desconfortáveis, como a de um personagem bebendo água do banho de outro, e o desfecho chocante e meio pretensioso do filme, provocam debates sobre se são expressões da genialidade da diretora ou simples truques baratos e vazios, sob medida para chocar o espectador.
A polêmica em torno de Saltburn não é tanto uma consequência da intenção do filme como sátira social, mas, sim, derivada de suas artimanhas criativas: provocar visualmente, retratar a riqueza aristocrática e a devassidão de maneira luxuosa, e sublinhar desejos de maneira escancarada e abusada.
Saltburn é uma obra focada em sensações, e Fennell demonstra habilidade nesse aspecto. O filme faz uso extensivo de montagens suntuosas, escolhas nostálgicas de trilha sonora (a trama se passa na primeira década deste século), destacando-se especialmente “Time to Pretend”, do MGMT, e “Murder on the Dance Floor”, de Sophie Ellis-Bextor, e dioramas de beleza e vigor intensos.
‘Saltburn’: o enredo
A narrativa inicia com um Oliver Quick adulto (interpretado pelo ator irlandês Barry Keoghan, de Os Banshees de Inisherin) declarando nunca ter estado “apaixonado” pelo lindamente distante Felix Catton de Jacob Elordi (da série Euphoria e o Elvis de Priscilla), enquanto se deleita com closes detalhados do suor de Felix, sua nuca, seus músculos abdominais, seu narcisismo. Tudo observado voyeuristicamente através de uma janela. Isso, de maneira sucinta, estabelece que o filme trata de intoxicação e fixação de Oliver por ele.
A proposta é fazer com que o espectador olhe e sinta primeiro, deixando o pensamento para depois (embora seja válido destacar que mais reflexão pode resultar na desconstrução de toda a trama).
Esse clima, essas sensações emanadas pelo filme, são cativantes, mas também podem distrair, compensar em excesso e até enganar. Apesar dos esforços de sátira em relação à classe social privilegiada, Saltburn parece, em grande medida, ser nada além de luxuoso. O filme se deleita na grandiosidade da mansão que lhe dá título, em reviravoltas na trama que beiram o ridículo, e nas excentricidades aristocráticas representadas pelos excelentes Rosamund Pike e Richard E. Grant, interpretando os pais de Felix.
Vazio
Apesar dos esforços de sátira em relação à classe social privilegiada, Saltburn parece, em grande medida, ser nada além de luxuoso.
A lógica subjacente – personagens superficiais, descartáveis, e uma trama carente de fundamentação navegando em uma aura sedutora – ecoa, de certa forma, a abordagem de Euphoria, também uma obra que aposta no poder de choque, uma marca da contemporaneidade. Saltburn, assim como a série da HBO, é colorido, intenso, exuberante, excessivamente provocante e, por vezes, frustrantemente superficial, embora jamais monótono, é preciso dizer. Essa abordagem inspirou uma resposta dividida entre público e crítica. Seria Saltburn genial ou vazio? Genuinamente excitante ou apenas provocativo? Arrojado ou tolo?
A inclinação é sempre para a segunda resposta a essas perguntas, pois Saltburn parece superestimar seu poder, confundindo provocação com profundidade. Mais criticamente, há uma tendência a superestimar, mas também subestimar seu próprio impacto – não há como negar que o filme mexe e muito com o público. Sua repercussão é prova disso.
Os esforços de Fennell para provocar por meio de nudez, sexo e violência, embora desconfortáveis, carecem de uma base sólida em termos de construção de personagens humanos que realmente justifique tudo isso. Alguns momentos chegam a meio termo – como o banho de Oliver ou o ato sexual oral em Venetia durante sua menstruação -, sendo, de fato, muito provocativos para um público cada vez mais puritano. Mas, pelo menos, essas cenas tentam materializar o consumo da riqueza dos Catton pelo protagonista de uma maneira carnal.
Contudo, cenas como Oliver fazendo sexo na cova de Felix ou dançando nu na mansão que conquistou sem um propósito claro parecem oportunidades apenas para exibir um ator talentoso e atraente se contorcendo na terra molhada e dançando sem roupas. Não muito mais. A que leva o choque que essas cenas provocam no espectador? Chocam, sim, mas no fundo não querem dizer muito, não.
O que destaca é que a intenção do filme como uma sátira excitante, um retrato do desejo, se torna, por fim, amarga, o que é bem interessante. Como Fennell já fez em Bela Vingança, longa que lhe deu o Oscar de melhor roteiro original, o desfecho é surpreendente, mas não exatamente catártico, porque também sombrio, amargo. O problema é que a cineasta e roteirista não consegue mascarar a ausência de uma intenção coesa, de uma especificidade de personagens, lugar ou ideia. O filme carece dessa consistência, resultando um tanto cosmético, o que compromete seu impacto e deixa sua narrativa flutuando numa espécie de vácuo muito chique.
Saltburn está indicado a cinco Bafta (o Oscar britânico) em cinco categorias, incluindo melhor ator (Barry Keoghan), atriz coadjuvante (Rosemund Pike), ator coadjuvante (Jacob Elordi) e melhor filme britânico.
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