Felipe Hirsch costuma escrever peças teatrais. Em Severina (2018), primeiro longa-metragem do realizador, ele transpõe muitas dessas qualidades para o universo da sétima arte. No filme, um livreiro (Javier Drolas, de Medianeiras: Buenos Aires da era do amor virtual) é dono de uma loja que costuma receber periodicamente muitos amantes de livros para rodas de conversa. Certa manhã, uma jovem (Carla Quevedo) entra na livraria e é flagrada pelo livreiro roubando livros. Isso acontece repetidamente, porém ele não a interroga. Certo dia, ele a encurrala e ela confessa que roubou um livro. Mais interessado pela figura enigmática dela do que necessariamente pelo causo, o livreiro pergunta o nome dela na contracapa de um dos livros que ela eventualmente roubaria. A resposta, todavia, só é revelada ao final do filme.
É assim que o longa de Hirsch é construído nesse sentido: o amor pela literatura de ambos os personagens, tanto do protagonista quanto da misteriosa mulher. A relação entre os dois gira em torno da necessidade do livreiro em ter uma musa inspiradora, que inclusive o cativa a voltar a escrever, quanto dela em querer ter a maior quantidade de livros. Quando a relação finalmente se firma, porém, tudo começa a se complicar e a trama parece se esvair em um espiral vertiginoso, principalmente quando nos é apresentado um terceiro personagem (Alfredo Castro) que se funde como uma espécie de mentor da personagem de Carla Quevedo.
O ponto forte de ‘Severina’ é, sem sombra de dúvidas, a direção de fotografia no Uruguai.
Ana, como ela se identifica ao longo de quase todo o filme, é na verdade o arquétipo da mulher indecifrável, como no conto do zahir, de Jorge Luís Borges – que, inclusive, ela chega a citar em determinado momento da história. Já o livreiro se encanta por ela porque ele é triste, solitário e melancólico, mesmo com seu amor pela livraria e pela literatura. Os dois se unem não necessariamente pelo sentimento, mas por essa confusa relação que têm com os dispositivos ao seu redor.
Um dos pontos mais fortes de Severina, sem sombra de dúvidas, é a fotografia e os espaços físicos. As ruas vazias de Montevidéu, no Uruguai, o clima invernoso da cidade e as tonalidades de cores frias e o marrom dos móveis antigos da livraria são o verdadeiro charme do filme e pintam o retrato de uma história quase que noir, porém mais ambientada em locações no período diurno.
Severina é também, em certo ponto, um filme sobre a criação, especialmente a criação literária. Quando o personagem de Drolas volta a escrever e se dá conta de que a mulher misteriosa poderia ser muito bem apenas uma invenção da sua cabeça, isso poderia representar a construção de histórias e personagens na cabeça do próprio escritor, aqui identificado por este arquétipo. “Nós funcionamos porque eu sei muito pouco sobre você e você sabe tudo sobre mim”, comenta em certo momento Ana para o livreiro sobre o relacionamento entre os dois, que também é a definição da saga de um artista na construção da sua criação.
Todavia, o filme não consegue traçar uma verossimilhança muito bem delineada entre os personagens, que chegam a parecer, em determinados momentos, muito caricatos. Talvez pelo caráter mais teatral do roteirista, e isto não necessariamente significa algo ruim, a impressão que fica é que estamos assistindo uma peça de teatro e que o dispositivo principal é como os personagens se enquadram na história, e não necessariamente se nos identificamos com algum deles. De qualquer modo, Severina é uma deliciosa trama para aquilo que se propõe: o romance em torno da literatura, especialmente por conter uma gama de citações que se conectam e criam toda uma aura de prolixidade.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.