No último domingo, imediatamente após o entrevero entre o ator Will Smith e o comediante Chris Rock na cerimônia de entrega do Oscar, Summer of Soul (…ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada) venceu a estatueta de melhor documentário em longa-metragem. O momento, que deveria ser de celebração da cultura afro-americana, acabou sendo (muito) ofuscado pelo episódio lamentável entre Smith e Rock, dois homens negros. Uma pena!
Summer of Soul resgata um episódio importantíssimo da gigantesca e diversa cultura black nos Estados Unidos: o Harlem Cultural Festival, evento que ocorreu em 1969, à mesma época em que o Festival de Woodstock chamou a atenção do mundo, mas, de certa forma, perdeu-se no tempo, por conta da indisponibilidade de imagens – e do desinteresse da indústria cultural.
O diretor e músico Ahmir “Questlove” Thompson, fundador do grupo de rap The Roots, usou como base imagens lindamente restauradas que, por 50 anos, ficaram esquecidos e se deteriorando num porão.
Summer of Soul, com um pouco mais de duas horas de duração, presenteia o público do século 21 com uma síntese arrebatadora desse material bruto. Questlove, a partir do tesouro imagético que tinha nas mãos, tratou de reconstituir o Harlem Cultural Festival, fazendo um impressionante trabalho de pesquisa histórica, que o levou à gênese do festival e sua realização. Também entrevistou artistas, pessoas que nele trabalharam e a que, foi aos shows naquele verão quente no Harlem, bairro negro de Manhattan, em Nova York.
Precioso, Summer of Soul é construído em torno das 40 horas de gravações de vídeo e áudio realizadas pelo produtor e cinegrafista Hal Tulchin.
Precioso, hipnótico, Summer of Soul é construído em torno das 40 horas de gravações de vídeo e áudio realizadas pelo produtor e cinegrafista Hal Tulchin. Ele esperava conseguir atrair interesse da indústria do entretenimento norte-americana pelo material que captou ao longo de seis domingos. Foi ingênuo.
Ninguém se interessou e esse acervo valiosíssimo foi soterrado pelo esquecimento até 2017, quando, depois da morte de Tulchin, as fitas caíram nas mãos de Questlove, que viu, entendeu a importância do que assistiu e decidiu produzir o documentário.
O filme constrói, a partir das imagens do festival, uma narrativa centrada, sim, na música, mas que também vai bem além dela. Questlove tem como subtexto a crescente tensão racial nos EUA. Após a morte dos líderes Martin Luther King e Malcolm X e do presidente John Kennedy e seu irmão, Robert, os jovens negros sentiam-se politicamente órfãos e desprezados ao serem enviados para morrer aos milhares Guerra do Vietnã, ou nas mãos da polícia, como ocorre até hoje.
Como havia uma quase generalizada desconfiança entre a população negra em relação ao establishment, os organizadores do festival convidaram integrantes do partido político Panteras Negras para responder pela segurança do evento. A miséria, o tráfico e o consumo de drogas angustiavam os moradores do Harlem no fim dos anos 1960.
Ao longo dos seis domingos no verão de 1969, aconteceram shows gratuitos de grandes nomes, como Stevie Wonder, Nina Simone, Sly and the Family Stone, Gladys Knight and the Pips, 5th Dimension, Mahalia Jackson e B.B. King, entre outros gigantes do soul, blues e gospel.
A única vez que a televisão nova-iorquina deu alguma atenção ao evento foi no dia seguinte à chegada dos astronautas brancos Neil Armstrong e Buzz Aldrin à Lua, em 20 de julho, para gravar a reação dos negros à conquista do espaço.
O repórter branco buscava, e acabou encontrando, um contraponto à exaltação patriótica em relação ao grande feito do governo americano, da NASA. O público que lotava o parque Mount Morris não estava nem aí para “o grande salto para a humanidade” dado na Lua. Suas prioridades eram outras. Queriam celebrar suas próprias cultura e identidade.
Summer of Soul esteve disponível no canal de streaming Telecine, porém foi retirado. Pode ser visto no Hulu.
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