Há personagens da chamada vida real que parecem ter sido imaginados pela ficção. A cabeleireira Mel é uma delas. Mulher trans capixaba, cristã fervorosa, se autodefine como ativista em tempo integral. E é sobre esse aspecto de sua vida que o documentário Toda Noite Estarei Lá, das cineastas Suellen Vasconcelos e Tati Fanklin, se debruça com suas lentes.
O longa-metragem, que participa da Competitiva Brasileira do festival Olhar de Cinema, começou a ser gravado em 2017, quando Mel, impedida de frequentar os cultos de uma das igrejas da Assembleia de Deus em Vitória, por conta de sua identidade de gênero, decide ir à luta sem pedir licença.
Toda noite de culto, ela prepara cartazes de protesto e os leva para a porta do templo evangélico, reivindicando seu direito constitucional de entrar e professar sua fé. Mas vista como uma encarnação demoníaca, uma provocação indesejada, ela é sempre barrada.
Toda Noite Estarei Lá acompanha o calvário de Mel bastante de perto, retratando seu cotidiano no pequeno salão de beleza que administra sozinha, e na casa que divide com a mãe idosa, Carol, adepta da religião Testemunhas de Jeová. Nas paredes de sua residência, assim como nas de seu estabelecimento comercial, Mel pinta e afixa versículos bíblicos, dizeres do livro sagrado, como se, de alguma forma, pudesse trazer para seu dia a dia o que ela não consegue viver plenamente na comunidade religiosa que ela escolheu e a rejeita, cerrando suas portas.
Aliás, toda a narrativa de Toda Noite Estarei Lá é marcada por portas fechadas, que ao longo do filme desempenham um papel metafórico para falar da existência trans. Mel, contudo, não se intimida. Entra na Justiça para garantir o direito de frequentar a igreja que escolheu. O documentário está com ela ao longo de todo o processo, mas a câmera, por solicitação dos advogados dos pastores, é impedida de acompanhar as audiências.
Em uma decisão estética potente, Suellen Vasconcelos e Tati Fanklin optam por também filmar essas portas fechadas, atrás das quais o destino da cabeleireira é decidido. Primeiro, Mel é derrotada e, depois, ao ter seu recurso julgado, recupera o direito de voltar a frequentar o templo, ainda que essa vitória se torne fugidia frente à intolerância dos pastores.
Em uma decisão estética potente, Suellen Vasconcelos e Tati Fanklin optam por também filmar essas portas fechadas, atrás das quais o destino da cabeleireira é decidido.
Suellen Vasconcelos e Tati Fanklin não desistem de Mel e seguem seus passos ao longo de anos marcados pela ascensão de um governo ultraconservador de Jair Messias Bolsonaro e pelas dificuldades trazidas por uma inesperada pandemia, quando ela vê sua clientela minguar e a renda cair. É nesse período que Mel volta a ser proibida de professar sua fé e retoma a batalha por justiça
A insistência e resiliência de Mel se tornam, da mesma forma, a das diretoras, que continuam a seguir seus passos, sua saga, do lado de dentro, realizando um documentário precioso, de enorme força, que tem cenas memoráveis, muito por conta da personalidade exuberante da protagonista, muito carismática, cativante.
Em certa medida, é questionável a opção de Toda Noite Estarei Lá de omitir o passado de Mel. Em debate que se seguiu à projeção do filme no Cineplex Novo Batel, ela revelou que se aproximou da religião evangélica após ser presa por tráfico – ela vendia drogas no seu salão, o que a levou a ser condenada a seis anos detenção. Essa informação, tão essencial à biografia da personagem, não está no filme, e poderia tê-la tornado ainda mais complexa, mas a omissão não chega a macular o impactante resultado final.
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