O espanhol de origem basca Cristóbal Balenciaga (1895-1975) serviu de molde para o cineasta Paul Thomas Anderson e o ator Daniel Day-Lewis no processo de criação do estilista britânico Reynolds Woodcock, complexo protagonista de Trama Fantasma, que estreia hoje no Brasil, embalado por seis indicações ao Oscar, incluindo melhor filme, direção e ator.
Um dos dos pioneiros no mundo da alta costura, Balenciaga era genioso, perfeccionista e dono de um temperamento intempestivo. Acima de tudo, sempre zelou muito por sua privacidade. Esses traços são replicados no roteiro original de Anderson, que mergulha fundo na subjetividade de Woodcock, dele fazendo um personagem cheio de camadas, instável, que somente um ator da envergadura de um estupendo Day-Lewis (talvez em seu último papel) seria capaz de enfrentar. Mas as semelhanças ficam por aí. Trama Fantasma navega pela ficção.
Na Inglaterra dos anos 1950, Reynolds é um homem de meia-idade, metódico e vaidoso, que detesta ver sua rotina abalada. Seu ateliê funciona no mesmo imóvel onde mora, o que não deixa de ser uma espécie de metáfora de sua existência, pautada pelo trabalho. Filho de uma costureira, com quem aprendeu a arte dos fios e das agulhas, ele nunca se casou e seus casos amorosos são sempre mulheres que, de alguma forma, são incorporadas a essa rotina, que não pode de forma alguma ser abalada. Sempre sob o olhar aquilino de sua assistente Cyril (a excelente Leslie Manville, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante).
Tudo muda quando, em uma breve viagem ao litoral, ele conhece a garçonete Alma (a revelação Vicky Krieps), uma bela jovem, por quem sente uma atração instantânea, que é correspondida. Ele resolve trazê-la a Londres, transformá-la em modelo e agregá-la à sua vida, como amante, repetindo uma mesma partitura. Mas nada será como antes. Alma é única. Faz jus ao nome. Revela-se forte, independente, e sobretudo desafiadora.
Paul Thomas Anderson vem se firmando, filme a filme, um dos diretores mais autorais e consistentes do cinema contemporâneo. Faz um cinema que quase sempre não embala o espectador, não lhe proporciona escapismo, e sim o incomoda.
Desde que tornou-se mundialmente conhecido com Boogie Nights – Prazer sem Limites (1997), retrato da indústria pornô nos anos 70, Paul Thomas Anderson vem se firmando, filme a filme, um dos diretores mais autorais e consistentes do cinema contemporâneo. Faz um cinema que quase sempre não embala o espectador, não lhe proporciona escapismo, e sim o incomoda, o tirando da zona de conforto, com personagens pouco ou nada empáticos, imagens desestabilizantes, ainda que quase sempre esteticamente belas. É, afinal, um perfeccionista. Obras-primas como Sangue Negro (2007) e O Mestre (2012) são exemplares nesse sentido. Trama Fantasma não é diferente.
Como fala do mundo da moda, sem que esse seja exatamente o foco central do filme, o novo longa de Anderson é visualmente impecável, uma costura de enquadramentos cuidadosamente pensados para refletir o universo subjetivo de Reynolds, um homem que vive o glamour na esfera pública, mas leva uma rotina bem mais discreta e ensimesmada no âmbito privado. Há, no roteiro de Anderson, um jogo de amor e perversidade que se estabelece entre Reynolds e Alma, que ganha contornos muito inesperados. Beira o bizarro, o assustador, sem perder de vista um certo romantismo muito peculiar, jamais previsível, embalado pela impecável trilha sonora de Jonny Greenwood (da banda Radiohead).
Entre os nove indicados ao Oscar de melhor filme, Trama Fantasma talvez seja o que tenha menos apelo imediato por aspectos socioculturais urgentes, ou evidentes, mas, curiosamente, é o que reúne qualidades artísticas mais sólidas e seria minha opção para melhor filme. É uma obra de arte menos sujeita a tornar-se datada.
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