Há uma certa ironia no fato de Três Verões, novo e pertinente longa-metragem da cineasta carioca Sandra Kogut, (do belo Mutum) ter chegado ao público brasileiro durante a pandemia, quando a maior parte das salas de exibição do país permanece fechada, inacessível. Exibida em sessões de pré-estreia em drive-ins em algumas cidades, a produção acaba de estrear em plataformas de Video On Demand (VOD), como a Now Net Claro e a YouTube Filmes, e tem como um de seus temas centrais as restrições do ir e vir quando a realidade atropela de surpresa. A causa, no entanto, não é um vírus letal, mas a corrupção endêmica.
Retrato de um Brasil super contemporâneo, Três Verões conta uma história exemplar da era Lava Jato. A protagonista é Madá, vivida por Regina Casé, em atuação premiada na última edição do Festival do Rio. Ela trabalha como caseira de uma família rica, proprietária de uma casa em um condomínio de luxo em Angra dos Reis, litoral do estado do Rio de Janeiro. Espécie de faz tudo, ela é pessoa de confiança dos patrões, e com eles conta para tentar uma vida melhor: tem planos de abrir um quiosque para turistas nas imediações da mansão e, no primeiro verão da trama, consegue que lhe emprestem o dinheiro para o terreno. Mas não tem ideia, ou se recusa a enxergar, que o favor não é desinteressado
No ano seguinte, durante o segundo verão, Edgar (Otávio Muller), o chefe da família para quem Madá trabalha, é preso e a maior parte dos seus bens ficam indisponíveis, incluindo o futuro quiosque da caseira, que se dá conta de que era, na verdade, laranja do patrão. Sem dinheiro para pagar os empregados da casa, e também sem salário, só lhe resta esperar na propriedade. E também do pai de Edgar, Lira (o veterano Rogerio Froes), professor viúvo e aposentado que se vê sitiado na mansão quando é impedido de retornar a seu apartamento no Rio, interditado pela Justiça.
Três Verões integra um ciclo recente de filmes brasileiros que retratam as tensas relações entre patrões e empregados domésticos e agregados. Entre esses títulos, estão O Som ao Redor (2012), de Kléber Mendonça Filho, Casa Grande (2014), de Fellipe Barbosa, e Que Horas Ela Volta? (2015).
Assistindo ao filme, é impossível não criar paralelos entre a ficção e a vida real do ex-governador do Rio, Sergio Cabral, preso por múltiplos crimes de corrupção, e sua relação com o pai, o importante jornalista e crítico musical de mesmo nome, e hoje com doença de Alzheimer.
De serviçal, Madá se torna dona da casa, ainda que temporariamente – Marta (Gisele Frões), mulher de Edgar, foge para os Estados Unidos, onde se refugia com o filho. Para pagar as contas e sobreviver, a caseira começa a organizar desde bazares com objetos e roupas da família até tours pelas mansões de barco para mostrar aos turistas as casas dos corruptos presos. É tudo tragicamente real.
Três Verões integra um ciclo recente de filmes brasileiros que retratam as tensas relações entre patrões e empregados domésticos e agregados. Entre esses títulos, estão O Som ao Redor (2012), de Kléber Mendonça Filho, Casa Grande (2014), de Fellipe Barbosa, e Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert, este último também estrelado por Regina Casé, no papel de Val, com quem Madá têm muitos pontos em comum, embora as personagens não se confundam. São mulheres do povo, serviçais oprimidas pelos patrões, mas com particularidades distintas.
No terceiro e último verão, ficamos sabendo mais sobre Madá, cuja inventividade, bom humor e senso de sobrevivência escondem uma grande tragédia em seu passado. O icônico pato de borracha amarelo da família, que antes reinava na piscina da mansão, agora está murcho e sujo de lama, e a personagem, ao saber da possibilidade de que o patrão pode ser libertado, para cumprir o resto da pena em prisão domiciliar, se vê numa encruzilhada. Mais uma das muitas em sua vida brasileira.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.