O ritmo inicial do filme Tully, do diretor Jason Reitman, é quase insuportável. Diálogos e cenas familiares extremamente triviais mostram um cotidiano sem grandes emoções ou revelações. No máximo, o que pode despertar a curiosidade é a escovação que a mãe faz no filho logo nos segundos iniciais.
Mas, na sequência, é possível confirmar a suspeita de que esse ritmo é cuidadosamente inserido para deixar claro como é tediosa e sufocante a vida da protagonista, Marlo (Charlize Theron). Ela está afastada do trabalho no setor de recursos humanos de uma empresa de barra de cereais para dedicar-se integralmente à função de mãe do terceiro filho prestes a chegar. Claro que, ficando em casa, precisa equilibrar as funções de doméstica, esposa e mãe dos outros dois filhos. E isso tudo cansa. O marido, Drew (Ron Livingston), não é má pessoa, mas não ajuda tanto assim. É comum vê-lo jogando videogame na cama como recompensa pelo trabalho que teve fora de casa.
O ritmo ganha mais intensidade e alegria com a chegada de Tully (Mackenzie Davis), a babá noturna paga pelo irmão de Marlo. Aos poucos, a personagem-título mostrará que terá muito mais a oferecer do que apenas aquilo que se espera dela.
O filme pode ser considerado um manifesto sutil a respeito da injustiça do peso social colocado sobre a mulher que precisa desenvolver tantos papéis.
Reitman é um diretor acostumado a infiltrar a câmera no cotidiano aparentemente simples e tedioso dos personagens para recolher minúcias dos relacionamentos humanos e, a partir delas, fazer o espectador refletir sobre a sua própria vida. Sua filmografia inclui obras como Juno (2007), Amor sem Escalas (2009), Jovens Adultos (2011) e Homens, Mulheres e Filhos (2014).
Tully segue essa linha de obras que lançam um olhar sensível sobre o comportamento humano, revelando-se um retrato da face menos glamorosa de ser mãe. O filme também pode ser considerado um manifesto sutil a respeito da injustiça do peso social colocado sobre a mulher que precisa desenvolver tantos papéis, além de, biologicamente, ser a responsável pela gestação de um novo ser humano. Por um lado, isso é mágico, mas, por outro, demanda esforços que, somados a tudo o que uma mulher precisa fazer, levam à exaustão. Existe uma cena muito bem editada com choro de criança que deixa evidente essa situação.
A certa altura, o espectador descobre que a cena dos segundos iniciais refere-se ao Protocolo de Wilbarger, terapia sensorial baseada na escovação do corpo. Tully termina com a provocação de que algo mais simples que o Protocolo de Wilbarger pode ter maior eficácia. E, mesmo que não tenha, rende uma bela cena.
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