Desde a sua primeira exibição na 50ª edição do Festival de Cinema de Brasília, em outubro de 2017, Vazante, o primeiro filme solo da diretora Daniela Thomas – que iniciou sua carreira como roteirista e diretora junto a Walter Salles no aclamado Terra Estrangeira (1996), seu filme mais recente tem sido alvo de críticas e conjecturas além das que a própria diretora afirma terem sido motivos para a produção do seu longa. Embora Daniele afirme que não tinha a intenção de fazer um filme necessariamente militante, estão imbuídas em Vazante várias questões de extrema importância no caldeirão de problemas do país e que são reverberadas até os dias de hoje.
A princípio, não podemos dizer nem mesmo que uma representação, por mais que exista, não possa ser uma má representação. A história do cinema trouxe isso inúmeras vezes, desde O nascimento de uma nação (1915), de David Griffith, que embora tenha todos os seus méritos técnicos e que tenha sido popular na época, representava todo um pensamento social racista em volta da Ku Klux Klan e que mais tarde o próprio diretor tenha produzido outro longa de mea culpa, Intolerância (1916). Ou seja, mesmo que não houvesse uma intenção, ela estava ali, intrinsecamente ligada à produção do filme.
‘Vazante’ é um belo exercício sobre a relação entre o cineasta, a repercussão do público e sua obra em si.
Em Vazante, é retratada em 1821 a história de uma pobre região do interior de Minas Gerais que antes era ligada à extração de diamantes. Ainda numa lógica quase que feudal, típica de um Brasil colonialista, as relações sociais eram muito pautadas na posse da terra e da quantidade de mantimentos alimentares, na sujeição da mulher enquanto posse masculina e na exploração escravocrata da população de ascendência africana. Com todos os takes acinzentados, paisagens áridas sob fotografia de Inti Briones, o filme é um recorte de uma dessas relações de vassalagem tão comuns na história brasileira.
O hiperrealismo do longa-metragem acontece uma vez que não há limites de representação, e nisso há realmente um mérito de Daniela Thomas. No entanto, a partir do momento que a diretora havia decidido representar tantos arquétipos da historiografia brasileira, seria vantajoso ir mais a fundo em cada um deles. A protagonista da história, a sinhá Beatriz (Luana Nastas), é oferecida de dote quando criança para um homem 40 anos mais velha que ela, Antônio (Adriano Carvalho).
Ao mesmo tempo que este acabava se relacionando com Feliciana (Jai Baptista), uma escrava da fazenda, por conta da diferença abissal com a sua então esposa, Beatriz criava uma relação ainda mais íntima com o filho dessa escrava, que tinha praticamente a sua faixa etária. É assim que a tragédia em torno do próprio filme vai se formando, num espiral complexo e bastante intrincado de relações invisíveis, mas que acabam se tornando um retrato de um Brasil silenciosamente miscigenado.
A grande crítica, no entanto, se dá em torno da historiografia de uma história que já foi muitas e muitas vezes contada sob a mesma ótica. Não há nada de novo no filme de Thomas, à parte de sua qualidade técnica, que não tenha sido representado tantas vezes e que nos tenha sido repassado de geração em geração sobre o tema. Contar a história do escravismo no Brasil através de uma lente de uma protagonização branca é bastante supérfluo, especialmente em tempos em que essa discussão é diariamente aprofundada.
A propósito, após o incidente do festival, a diretora escreveu um texto sobre como a sua relação com sua obra havia sido mal interpretada, que foi respondido pelo crítico de cinema Juliano Gomes sobre o movimento branco. Independente da intenção de Daniela, Vazante é um belo exercício sobre o cinema, o cineasta, a repercussão do público e sua obra, quatro fatores indissociáveis, especialmente em tempos em que a representação social é pauta sacra da produção cinematográfica em geral.
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