Em A vida provisória (1968), único filme ficcional do crítico de cinema Maurício Gomes Leite, a história de um Brasil é destrinchada por meio de uma ficção que beira o documental. Produzido logo após o golpe civil-militar de 1964, o longa tem bastante característica de filmes do período, como O desafio (1965), de Paulo César Saraceni, e, mais especificamente, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha. O filme de Maurício, no entanto, é menos caricato que o de Glauber e se abstém da utilização de metáforas e arquétipos.
A vida provisória retrata a história do jornalista Estevão (Paulo José), desencantado pela sua carreira, mas que sempre é motivado por razões políticas. Durante os primeiros minutos do filme, temos a impressão de que existe um narrador, talvez algum conhecido próximo, que expõe fatos e se coloca como onisciente na história. Estevão é um mineiro que cursou a sua faculdade em Belo Horizonte e, anos depois de formado, trabalha para um jornal conservador do Rio de Janeiro como meio de sustento. Ao tentar conciliar sua militância política e sua carreira, acaba sendo convocado para cobrir a fala do Ministro de Assuntos Exteriores em Brasília, enquanto leva documentos secretos a um sujeito misterioso, Cavalcanti.
O intuito de Gomes Leite era produzir um manifesto poético sobre a ditadura no Brasil e o espírito que pairava ante as revoluções de maio de 68.
A narrativa, embora seja centrada na profissão do redator e militante, relata também suas relações amorosas. A propósito, é incrível como as personagens no filme de Gomes Leite são sempre as que o fazem refletir sobre a sua condição e a de seu país. Envolvido com a esposa de um diplomata, Paola (Dina Staf), o longa traz planos longos de conversas que revelam a ideologia política divergente de ambos. Enquanto Estevão escreve e participa de manifestos contra a morte de intelectuais por conta da repressão política, a amante o questiona sobre um estudante cuja mão foi cortada e que não teve nenhuma repercussão midiática em cima dele. “O Brasil, Paola, é um país sentimental de gente forte e simples, que briga durante o dia, mas cede no jantar”, explica o personagem a Paola, enquanto divaga sobre o seu país.
O filme de Gomes Leite é repleto de frases e devaneios poéticos como este. Como na nouvelle vague francesa, com A chinesa (1967), de Jean-Luc Godard, como principal referência, A vida provisória é também feito de algumas sequências que desafiam a quarta parede, dialogam com o espectador e performam uma cena quase que teatral.
O exemplo mais emblemático do filme é quando Estevão vai a Belo Horizonte para encontrar Lívia (Joana Fomm), um antigo amor de faculdade e parceira de militância política. Lá, são convidados a assistir um filme na Faculdade de Direito em que uma militante, Tereza (Renata Sorrah), é torturada logo após recitar para a câmera frases de efeito a seus companheiro de revolução da Tchecoslováquia. A sessão termina e, logo em seguida, dois homens misteriosos aparecem e levam dois estudantes para a tortura. A metalinguagem presente é constante, tanto no filme do filme, quanto no filme, que vemos e remetemos à época negra da ditadura militar.
A fotografia de Fernando Duarte é muito importante nessa representação: o vazio do cerrado, dos prédios da cidade de Brasília, da urbanidade de Belo Horizonte, são muito bem captados, como se quisessem indicar um certo derrotismo em torno do povo e da luta. Por outro lado, as cenas dentro dos cenários onde os personagens políticos faziam suas falas são sempre abarrotadas de jornalistas, de pessoas e agentes sempre à espera de algum pronunciamento contundente sobre aquele momento que nunca vem, e nunca virá.
Quando Estevão finalmente se dá conta de que não existe nenhum Cavalcanti, ele finalmente é detido por agentes misteriosos, que o interrogam junto à outra militante, Márcia (Márcia Rodrigues). Lá, ele a questiona porque ela havia sido presa junta com ele, a passo que ela recita uma das frase mais fenomenais do filme: “Há muitos amores, pelos filhos, pelos companheiros de luta, e todos os amores são belos. Mas é preciso não esquecer de lutar por pensar demais no amor, ou não haverá mais amor nessa terra”.
O destino trágico de Estevão, executado logo após a intervenção de um deputado que chamou atenção de um ministro durante sua fala, também retrata a posição da sua classe enquanto militante. O jornalista nunca esteve isento de posição política ou ideológica, tanto isto, que essa foi a causa de sua morte, que aparece no filme com um tiro silenciado, invisível. O intuito de Gomes Leite era produzir um manifesto poético sobre a situação do Brasil e, não apenas daqui, mas do espírito que pairava ante as revoluções de maio de 68. O que conseguiu criar foi também um retrato histórico, desmantelado de censura e repleto de referências sobre cinema, jornalismo, militância e política.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.