Pelo segundo ano consecutivo, o Festival de Cinema de Gramado, um dos mais tradicionais do país, acontece de forma virtual, distante da cidade turística da Serra Gaúcha. A programação do evento, contudo, pode ser degustada todas as noites no Canal Brasil, que tem exibido os filmes das mostras competitivas. No texto de hoje, falarei de dois longas-metragens: A Suspeita, escolhido para a noite abertura, sábado passado, e Homem-Onça, exibido domingo. O festival vai até o próximo sábado, 21 de agosto.
Filme de estreia de Pedro Peregrino, diretor de novelas como Órfãos da Terra, vencedora do Emmy Internacional, e Éramos Seis, A Suspeita é um drama policial com toques de thriller psicológico. A trama é construída em torno da protagonista, a comissária Lucia, da Polícia Civil do Rio de Janeiro. A personagem vivida por Glória Pires é uma profissional obstinada, que dedicou toda a sua vida ao trabalho, abrindo mão de formar uma família.
Encarregada de produzir provas contra um chefe do tráfico de drogas, a policial dá um passo em falso quando grampeia, de forma ilegal, o celular de um jornalista que está escrevendo biografia do contraventor. Numa operação aparentamente mal sucedida, o escritor é assassinado e, por uma série de circunstâncias, Lúcia se torna a principal suspeita, embora esteja certa de que não é culpada.
Acontece que há um detalhe imoprtante: a detetive começa a apresentar os primeiros sintomas da doença de Alzheimer e, talvez, nem tudo que se lembra, ou que nós, como espectadores, conseguimos ver, tenha ocorrido como ela se lembra. O quadro neurológico da personagem é o grande achado do roteiro, embora a narrativa tenha problemas sérios de ritmo, encontrando dificuldade para decolar. A atuação de Glória Pires, em cena o tempo todo, é o principal motivo para ver o filme. Sutil, nuançada, sua interpretação é notável.
Privatização
Superior a A Suspeita como um todo, Homem Onça, de Vinicius Dias, é uma alegoria dramática que discute um tema muito pertinente no Brasil dos dias atuais: a privatização. O grande Chico Diaz (de O Invasor) vive o papel de Pedro, um homem de 55 anos que, na infância, na propriedade de sua família, no interior, de certa forma presenciou a caça de uma onça, experiência que o marcou para o resto da vida.
A grande atuação de Glória Pires, em cena o tempo todo, é o principal motivo para ver o filme. Sutil, nuançada, sua interpretação é espetacular.
Chocado e sensibilizado com a morte do animal, Pedro se torna um cientista especializado em questões ambientais. Em uma estatal de gás, nos anos 1990, ele desenvolve um projeto de preservação premiado internacionalmente.
Porém, quando a empresa, inspirada na gigante da mineração Vale, é privatizada e vendida para um grupo estrangeiros, as prioridades mudam: há um enxugamento no quadro pessoal e todo o seu trabalho fica sob risco. O impacto na vida de Pedro é avassalador, inclusive no plano pessoal, afetando sua relação com a mulher, Sonia (Sílvia Buarque) e a filha.
Cinco anos mais tarde, o vemos morando na região de sua infância, onde a onça foi morta, e casado com outra mulher, Leila (Bianca Byngton), sua namorada de adolescência. Deprimido, passa os dias tentando compreender o que ocorreu em sua vida.
Ao traçar um paralelo entre o trauma vivido no passado, com a morte do felino, e o que ocorreu com a privatização da empresa em que Pedro se realizou profissionalmente, Homem Onça é uma fábula que discute ambientalismo e privatização de forma existencial e intimista, com muita originalidade, mas também com contundência. Chico Diaz, ator de vastos recursos, empresta ao personagem uma complexidade que se estende a todo o filme, em sua forma e conteúdo.