A história de amor entre Nicole e Charlie é, em certa medida, exemplar. Na superfície, o casal parece ter sido feito um para o outro: ele é diretor de teatro e ela, atriz. Trabalham e vivem juntos, compartilham interesses e amigos. Teriam tudo para serem felizes, e talvez até um dia foram, mas acabam se perdendo um do outro. Como na vida real, nada é para sempre.
O cineasta norte-americano Noah Baumbach, que em 2005 realizou um de seus filmes mais importantes, A Lula e a Baleia, também a respeito de um casal que se separa, retoma aqui o mesmo tema em História de um Casamento, produção do canal de streaming Netflix, já disponível para espectadores em todo o mundo.
Desta feita, o diretor, dizem, teria injetado no enredo detalhes autobiográficos. O roteiro, excelente, guarda semelhanças com o que ele viveu há alguns anos, em sua atribulada relação com a atriz Jennifer Jason Leigh, dirigida por ele em Margot e o Casamento (2007). O diretor, contudo, não confirma nem nega.
Para viver os protagonistas de Historia de um Casamento, recordista em indicações ao Globo de Ouro neste ano, Baumbach, que havia escrito apenas o argumento, convidou Scarlett Johansson (de Encontros e Desencontros) e Adam Driver (de Infiltrado na Klan) para estrelarem o filme. Apenas depois dessa escolha, ele desenvolveu a versão final do roteiro, já tendo os atores (com suas características físicas e dramáticas) em mente, construindo Nicole e Charlie sob medida, dando aos astros, também, a liberdade de improviso. A estratégia deu certo – ambos estão excelentes, viscerais, em seus papéis.
Todas essas informações, metafílmicas, acabam sendo muito relevantes porque História de um Casamento é, fundamentalmente, uma obra de roteiro, centrada nas atuações do elenco, nos arcos dramáticos dos dois personagens e seus diálogos. Como não temos acesso à parte feliz do relacionamento, ao processo de apaixonamento, tampouco ao da crise e afastamento entre Nicole e Charlie, temos de lidar, fundamentalmente com um fato quase consumado: a separação.
Para viver seus protagonistas, Baumbach, que havia escrito apenas o argumento, convidou Scarlett Johansson e Adam Driver. Apenas depois dessa escolha, ele desenvolveu a versão final do roteiro.
Tudo se inicia com relatos que um faz sobre o outro, sob a forma de textos escritos, a pedido de um terapeuta de casais. A proposta é lembrar por que se apaixonaram; o que admiram e os ainda encantam no parceiro, como uma tentativa de resgatar o que se perdeu. É um artifício dramaticamente eficiente para conhecermos a subjetividade de cada um, sem falar de que um desses relatos será muito importante mais tarde no desenrolar da trama.
Por ter traços de sua própria experiência, é natural que, embora tente contar os dois lados da história, Baumbach mergulhe mais fundo na dor de Charlie, que vê Nicole partir com o filho do casal, Henry, de Nova York, onde moram, para Los Angeles, cidade natal da agora ex-mulher. Ela recebe uma proposta irrecusável para estrelar o piloto de uma série de televisão. Por trás desse movimento, no entanto, há muito mais do que uma decisão profissional.
Atravessar o país, para Nicole, é ir em busca de si mesma, resgatar sua história e autoestima, perdidas ao longo do percurso conjugal. Charlie, um diretor talentoso, respeitado pela crítica, aos poucos a foi sufocando, por julgar que suas necessidades se confundiam com as dela. Em meio a tudo isso, o mais triste: o que vai acontecer com Henry?
O que deveria ser um assunto para ser decidido a dois, se torna uma questão judicial, fazendo emergir ressentimentos soterrados – qualquer semelhança com Kramer vs. Kramer (1979), drama familiar de Robert Benton sobre o mesmo tema (com Dustin Hoffman e Meryl Streep), vencedor do Oscar de melhor filme, não parece ser mera coincidência. Há uma clara relação entre os dois longas, até mesmo nos seus cartazes, muito assemelhados.
Nesse momento de judicialização do conflito, entra em cena a performática advogada Nora (Laura Dern, em desempenho literalmente espetacular), que estimula Nicole a sair de sua passividade e ir à luta, para bem e para o mal. O drama entre marido e mulher se torna, a partir daí, também um confronto de gênero – enquanto Nicole busca seu lugar no mundo, Charlie vai sendo aos poucos se esfacelando e sendo desconstruído em suas certezas masculinas pelas circunstâncias.
Ao contrário de O Irlandês, filme de Martin Scorsese também produzido pela Netflix, mas que merece ser visto numa tela grande de cinema, Historia de um Casamento, por ser mais camerístico, sem maiores arrebatamentos estéticos, e repleto de closes, funciona sem prejuízo na televisão. Como seu apelo dramático está bastante concentrado nos diálogos, muito orgânicos, fluidos, o foco maior acaba sendo nos personagens e na dor que os atravessa.
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