Sempre tive a impressão de que toda viagem, e por consequência todo viajante, guarda uma melancolia tremenda. Nunca me acostumei com a ideia da partida, apesar de compreender a necessidade de se estar sempre em movimento. Pedras que rolam não criam limbo, bicho!
Ao fazer a mala, guardamos dentro dela pertences. Objetos de uso diário como roupas, sapatos, livros, um kit para higiene pessoal e o que mais for necessário para sobreviver em nosso destino. Cada mala guarda um pouco do que somos, ou aparentamos ser, e a isso damos o nome de bagagem. Existe, no entanto, um outro tipo de bagagem, que é aquela que nunca conseguimos organizar como realmente gostaríamos. Aquela que diz muito sobre quem somos, ou desejávamos ser. Essa carregamos no peito e sempre fazemos questão de deixar ao menos um pedacinho dela pra trás, nos caminhos por onde passamos.
Ao organizar minha bagagem, sempre acabo bagunçando o meu peito, que vive em completa e absoluta desordem. Quando partimos, mesmo que momentaneamente, deixamos em nosso lugar de origem toda saudade do mundo, e a esperança de um dia retornar a uma vida que já não existe mais, já que a vida muda a todo momento. Todo aeroporto guarda um pouco de tristeza, mesmo nas viagens mais aguardadas. E todo ser humano parte sem a certeza de que deve mesmo seguir adiante, mesmo que essa partida tenha data de retorno. Acho, realmente, que nunca estaremos prontos pra dizer adeus, mesmo com a certeza da volta.
E eis que no dia 10 de junho, quarta-feira passada, foi a a minha vez de arrumar as malas e desajustar a alma, embalar roupas e abandonar paixões, separar casacos empoeirados e “encabidar” medos; tudo isso em função de um convite, ou melhor um privilégio: cobrir pelo site da Escotilha o 4º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba. A primeira impressão foi das melhores possíveis. Curitiba recebeu esse paulistano com os braços abertos e calorosos, coisa imprescindível diante do frio que se anuncia por aqui. A cidade, ao menos o centro onde estamos hospedados, é arborizada e guarda, apesar de ser a capital do estado, um ar interiorano e acolhedor que me deixou completamente à vontade na primeira caminhada.
Um cigarro encostado em um canto da Praça Rui Barbosa, um café pelos arredores do Shopping Metrópolis e um porre, desses que afogam quase todas as dores, com um amigo de tempos em uma birosca qualquer pela noite paranaense. Pronto! Podem me considerar um apaixonado pela cidade e pelo seu povo, que ainda guarda uma certa rejeição a alguns forasteiros, coisa que dura até o terceiro trago.
Como disse, todos os colegas jornalistas estão hospedados no mesmo hotel. É um dos ambientes mais fascinantes e agradáveis que se pode imaginar. Ao acordar, damos de cara com rostos e nomes que conhecemos e admiramos. O papo de elevador, geralmente odioso e sempre constrangedor, envolve nomes como Jacques Tati, Jean Cocteau, Glauber Rocha, Orson Welles e tantos outros monstros sagrados da sétima arte. Nos corredores, temos a impressão de que a qualquer momento poderá surgir entre nós Jean-Luc Godard, com seu cigarro no canto da boca e seu olhar de metralhadora.
Nos encontramos no café da manhã e conversamos sobre o filme da noite anterior, o belíssimo e altamente recomendado Rabo de Peixe, dos portugueses Joaquim Pinto e Nuno Leonel. Sotaques e idiomas misturam-se tal qual o cheiro do café e do pão no ambiente. Eu, um novato em todos os sentidos, recolho-me quieto e observo com extrema admiração esses homens e mulheres que fazem do cinema e do jornalismo sua paixão, seu sustento e, acima de tudo, sua causa. Saí do café para escrever meu primeiro texto em terras curitibanas, tomado por um misto de pânico e êxtase.
A cidade respira cinema. Evidentemente que o Festival ainda tem muito a proporcionar, estamos hoje no início do terceiro dia, ou seja, percorremos exatamente um terço do período programado.
A cidade respira cinema. Evidentemente que o Festival ainda tem muito a proporcionar, estamos hoje no início do terceiro dia, ou seja, percorremos exatamente um terço do período programado; tem muita coisa ainda por vir. Após o texto finalizado, fumo um cigarro e contemplo a cidade do 12º andar do hotel. É fim de tarde.
Uma névoa se precipita sobre o pico dos prédios; uma fila de táxis laranjas colore de maneira extravagante o meio-fio; uma senhora aguarda para atravessar na faixa de pedestres e, sem saber, me faz rápida companhia em minha última baforada. Desço pelo elevador e cruzo a Rua Emiliano Perneta, em frente ao Arrumadinho, dirigindo-me para o Espaço Itaú 3, na intenção de assistir às 17 horas o genial e já aclamado “Bang Bang” do diretor Andrea Tonacci, que faz parte da mostra “Olhares clássicos”.
Chego ao shopping. Confesso que não pisava em um há tempos, e fico espantado com a quantidade de pessoas, jovens em sua maioria, aguardando para assistir ao filme. Retiro o meu ingresso e dirijo-me à sala, acompanhado de um amigo e de toda a euforia que o momento proporcionava. O filme de Tonacci dispensa comentários. É uma obra-prima do cinema mundial, dessas imprescindíveis, que devem ser vistas e revistas até o fim dos nossos dias. O filme começa: “Eu sonhei que tu estavas tão linda, numa festa de raro esplendor”.
Peréio ainda choca, munido de seu impressionante desbunde e de toda a sua ousadia. Durante os 10 primeiros minutos vejo 4 pessoas saírem da sala. O cinema de Tonacci ainda representa uma ameaça ao status quo, ao menos dos curitibanos. Um casal que se beijava ao meu lado interrompe os amassos e se entrega ao olhar furioso do diretor. Com 40 minutos de filme, vejo mais 3 pessoas desistindo da empreitada. Comento com o amigo ao lado que o cinema cumpre seu papel quando vemos tamanho incômodo. Ele concorda e faz um comentário genial sobre a questão de incomodar ou simplesmente chocar o espectador. As luzes se acendem e vejo que os que resistiram estão encantados. Realmente o filme de Tonacci descolonizou o olhar do espectador. Vencemos, ao menos por enquanto.
Saio de lá e preparo-me para assistir à preciosidade da noite: Gastronomia Urbana, do diretor curitibano Ricardo E. Machado. O filme é o único longa da mostra Mirada Paranaense, que na minha opinião é a grande sacada do Festival. Entro na sala, depois de um chopp e um cigarro no bar da esquina, e vejo um público interessado, ansioso por esse filme sobre a cidade que habitam e amam. Machado faz uma breve apresentação, a sala o ouve compenetrada. As poucas palavras são completamente avassaladoras: “é uma honra e uma pena que eu seja o único representante de Curitiba a exibir um longa”.
O filme, que faz uma analogia metafórico com o pão, é absolutamente indigesto. Ricardo E. Machado desnuda a cidade, e nos coloca cara a cara com a nossa própria miséria. Fico absolutamente impactado com o filme, que recebe uma crítica precisa e absolutamente genial do amigo, e companheiro de lutas, Alejandro Mercado (leia aqui). Saímos de lá com sede de cinema. Caminhamos por uma Curitiba deserta em busca de uns goles para acalmar a alma. O filme de Machado, assim como a Mirada Paranaense, nos deixou atormentados. Conversamos, rimos e voltamos pra casa com a certeza de que estamos fazendo parte da história. No segundo dia do festival, termino a noite olhando pro horizonte de uma cidade que tem dado ao cinema, ao menos nesses dois dias, o devido respeito e imensa devoção.
Desperto com uma chuva fina e sento em frente ao computador para escrever essas primeiras impressões. Hoje o dia será marcado por grandes filmes, como, por exemplo, o Orfeu de Cocteau. Aguardo ansiosamente o filme de Mossa Bildner com imagens de Glauber Rocha, que passará às 20h no Shopping Curitiba e pretendo terminar a noite assistindo à Mirada Paranaense que, volto a dizer, é a coisa mais importante e interessante que vi na programação do festival e nos meios cinematográficos brasileiros atualmente. Cai uma chuva fina, é o dia da paixão e eu ouço Chet Baker, agradecendo as possibilidades de encontro que tenho vivenciado por aqui.
Obrigado, Curitiba!
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