Superficialmente, a Black Rio pode ser resumida como um movimento que ocorreu no Rio de Janeiro reproduzindo a onda da soul music norte-americana nos anos 70.
Mas foi muito mais que isso.
Junto à música havia a autoestima, a valorização da estética e da identidade negra. Não era apenas lazer, mas sim a representação do orgulho negro.
Essa importante manifestação está registrada no livro 1976 – Movimento Black Rio (2016), que além de marcar a história do negro brasileiro que muitos tentam apagar ainda faz com que, 40 anos depois, seja feita justiça com relação aos detratores que o enxergavam meramente como uma importação americana.
Isso porque os autores Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Octávio Sebadelhe propõem com a publicação da editora José Olympio patrocinada pela Natura Musical um debate muito mais aprofundado que, passado o calor do momento, torna possível enxergar de maneira mais lúcida o que realmente foi a Black Rio.
E o que foi?
Ninguém melhor do que quem viveu para falar sobre o assunto. O sociólogo Carlos Alberto Medeiros, em depoimento ao livro, fala sobre a descoberta de si mesmo ao comprar uma revista Ebony:
“Quando saí do trabalho resolvi comprar a revista e percebi que, naquele momento, para mim, tinha sido um passo. Porque, comprar uma revista para negros, na minha concepção, naquela época, significava, de uma certa forma, assumir uma posição. E assumir uma posição, nesse sentido, era algo que os negros eram estimulados a não fazer, porque aquela atitude poderia lhe causar problemas. Problemas no emprego, ou com alguns amigos brancos, ou seja, não representava algo positivo. E foi então que percebi que aquele receio era uma bobagem. Ter comprado a revista foi uma quebra de paradigmas”.
Mas foi encontrando outras pessoas como ele que a sua descoberta se tornou maior:
“Para mim foi um impacto muito grande, porque me deparei com centenas de jovens negros, homens e mulheres, a maioria de cabelo afro. Daí eu percebi que aquelas pessoas estavam ali, não porque elas só poderiam frequentar aquele lugar, ou seja, não era por uma questão de segregação. Elas estavam ali porque elas queriam celebrar a sua negritude, a sua beleza, o seu cabelo e a sua estética. Foi uma segunda experiência muito forte pra mim, para perceber a minha própria personalidade”.
No entanto, ainda que tenha tido uma representatividade tão grande para os negros, o movimento sofria duras críticas vindas tanto da direita, que ao defender uma suposta democracia racial o via como movimento de segregação, quanto da esquerda, que enxergava o soul como um modelo de exportação norte-americano que deveria ser evitado em detrimento do samba.
Sobre essa questão, Asfilófilo de Oliveira Filho, o Dom Filó, declara:
“Por que se aceita com toda naturalidade que a juventude da zona sul se vista de jeans, dance o rock, frequente discoteca e cultue Mick Jagger, enquanto o negro da zona norte não pode se vestir colorido, dançar o soul e cultuar James Brown? Por que o negro tem que ser o último reduto da nacionalidade ou da pureza musical brasileira? Não será uma reação contra o fato de ele haver abandonado o morro? Contra uma eventual competição do mercado de trabalho? Por que o negro da zona norte deve aceitar que o branco da zona sul (ou zona norte) venha lhe dizer o que é autêntico e próprio ao negro brasileiro? Afinal, nós que somos negros brasileiros nunca nos interessamos em fixar o que é autêntico e próprio ao branco brasileiro”.
Assim, sem colocar o Black Rio como uma unanimidade, o livro trata também das opiniões contrárias, propondo um debate muito bem fundamentado tanto por meio de uma vasta bibliografia quanto de entrevistas cedidas para a própria publicação, além de contar com um rico material fotográfico. Dessa maneira, os autores fazem jus ao que de fato representou o movimento Black Rio.
Para contar essa história, a narrativa inteligentemente usa Filó como um fio condutor. E assim como ele próprio, um engenheiro que vira produtor, DJ e fundador de uma das principais equipes de som, a Soul Grand Prix, o movimento vai sendo criado, descoberto, e expandido cada vez mais.
Dessa forma, a obra trata da importação do soul feita por Tony Tornado, que tendo vivido nos Estados Unidos em sua juventude seguiu os preceitos de Malcolm X e os Panteras Negras.
De volta ao Brasil, além te trazer as roupas e a linguagem, trouxe a musicalidade que mostrou no V Festival Internacional da Canção, causando furor na massa e chamando a atenção dos militares.
‘Por que se aceita com toda naturalidade que a juventude da zona sul se vista de jeans, dance o rock, frequente discoteca e cultue Mick Jagger, enquanto o negro da zona norte não pode se vestir colorido, dançar o soul e cultuar James Brown?’ Dom Filó
Mas além dele, outro cantor teve ainda mais problemas com a ditadura militar no mesmo evento. Quando terminou a sua apresentação ao lado da Banda Veneno, Erlon Chaves beijou dançarinas louras e, por isso, foi preso, impedido de exercer suas atividades e recebeu a recomendação de sair do país.
Já no ano seguinte (1971), Elis Regina cantou “Black is Beatiful”. No final da apresentação, Tony subiu no palco, a abraçou e colocou o punho em riste. Por conta disso, saiu do local algemado e foi prestar esclarecimentos no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).
Mas, além da perseguição que o movimento sofreu desde o seu início, o livro trata também dos primeiros DJs, as primeiras coletâneas, os programas de rádio, a criação e a expansão das equipes de som.
E como a Black Rio não é apenas som, a obra explora também a sua origem, que procurava não apenas reproduzir o que vinha dos Estados Unidos, mas que ia em busca da sua ancestralidade africana, o que fez com que nascesse ali uma expansão do movimento negro.
Sobre a rivalidade com o samba há a exploração e a negação da polêmica, mostrando, por exemplo, a proximidade entre Filó e Candeia.
Quanto aos cantores, há espaço dedicado para os principais ícones como Tim Maia, Cassiano, Gerson King Combo, Toni Bizzarro e a Banda Black Rio. Além deles é mostrada também a influência exercida pelo movimento em outros artistas da música brasileira, como Jorge Ben Jor e Luiz Melodia.
Há ainda uma explicação de como se deu a transição para o funk carioca, que mantém viva algumas das equipes que surgiram naquele período.
Sobre uma delas, a famosa Furacão 2000, o livro revela uma história interessante. É o fato de o nome ter sido sugerido pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, o mesmo que comandando a ditadura militar, perseguiria a Black Rio. Isso porque, em certa ocasião, Médici estava hospedado em um hotel ao lado de onde a então equipe Som 2000 se apresentava. O comandante teria dito: “Essa música mais parece um furacão!”.
Assim como essa, a publicação conta com outras histórias bastante relevantes, como por exemplo, o fato de o jogador Paulo César Caju ter pintado o cabelo na cor que lhe rendeu o apelido após ter se deparado com uma manifestação dos Black Panther nos Estados Unidos.
Outro relato que chama atenção é o do compositor Macau, que foi levado para a delegacia e chamado pelo delegado de “crioulo muito folgado”. Não aceitando, foi agredido pelos policiais. A sua revolta sobre o fato resultou na música “Olhos Coloridos”, sucesso na voz de Sandra de Sá.
Há ainda o relato da contribuição paranaense para a Black Rio por meio de algumas páginas dedicadas ao maestro Waltel Branco.
Dessa forma, o livro faz com que o movimento Black Rio vá muito além de 1976.
1976 – Movimento Black Rio | Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Octávio Sebadelhe
Editora: José Olympio;
Tamanho: 252 págs.;
Lançamento: Novembro, 2016.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.