É fácil rir daquilo que não se é.
Ao longo dos anos a comédia criou uma tradição (nossa, muito engraçada!) de fazer rir das minorias e ajudar a manter o status vigente. O negro, a mulher, o nordestino, o homossexual, o obeso e outros grupos já discriminados na sociedade eram também usados pelos comediantes como saco de pancadas, que por serem dadas de maneira metafórica e cômica são capazes muitas vezes de criar hematomas na alma.
Mas e quando o tema da piada é você? É possível rir da própria desgraça?
A peça O Homem Desconfortável, que encerrou sua temporada ontem, causa identificação e provoca o riso ao mesmo tempo em que dá um tapa na cara. Missão difícil, mas desempenhada no texto de Edson Bueno com a mesma perícia que faz o grupo de rap goiano Atentado Napalm.
Mas, como no teatro há a necessidade de um conjunto coeso para obter um resultado harmônico, o texto só consegue se efetivar por meio da direção de Alexandre Reinecke e da atuação de Kauê Persona, incorporando um homem corporativo que busca o sucesso e o dinheiro enquanto deixa de lado a saúde, o sexo, a família e tudo aquilo que mais importa e o dinheiro não compra.
Marcando a volta do Teatro de Comédia do Paraná, o espetáculo, que conta ainda com os atores Carolina Meinerz, Christiane Macedo, Eliane Campelli, Leo Campos, Marcel Szymanski, Pedro Inoue, Simone Magalhães, Tatiana Blum e William Barbier, promove também críticas à imprensa e ao mercado editorial e publicitário.
Mais um naufrágio, navegam pela internet / Uma vida tão pequena caberia em um disquete / Ficou em choque sim, mesmo assim não toque em mim / Os relacionamentos hoje não são mais touch screen” Atentado Napalm – “Tempos Modernos”
Reunindo isso em apenas um ambiente e dando luz ao que for necessário, mas sem que os demais aspectos da vida e da peça deixem de existir, o cenário de Guenia Lemos e a iluminação de Beto Bruel são especialmente representativos ao demonstrar como tudo acontece ao mesmo tempo na vida do homem que mal consegue dormir e está a todo momento incomodando ou sendo incomodado pela secretária, pela ex-mulher, pela sua mãe que pede dinheiro a todo momento para manter o amante, pela editora viciada em cocaína, pelo modelo que quer vender a sua imagem de perfil do lado esquerdo, mas ainda não aprendeu a vender a alma, pelo seu filho de 19 anos que está em um manicômio e pelo facínora sobre o qual está escrevendo o livro com que pretende atingir o próximo sucesso editorial.
Como se vê, a temática soa pesada, mas conta com personagens caricatos, marcados pela atuação e pelo figurino de Eduardo Giacomini, que promovem o riso, mas ainda assim fazem com que o espetáculo possa ser questionado se o seu gênero seria mesmo a comédia.
Essa reflexão sobre a vida atribulada que nos deixa cada vez menos humanos é também a temática da música “Tempos Modernos”, em que o mc Gigante no Mic, do grupo Atentado Napalm, vê o tema pelo viés da tecnologia e o aborda de maneira crítica e criativa:
“Na era da informática, corrida cibernética
O amor morre na prática, vivemos pela estética
No mundo de aparências a maquiagem vicia
Vejo corações gelados numa eterna guerra fria
É tanta correria que cê faz pra conseguir
Poder comprar uma casa aonde cê vai só pra dormir”
Por outro lado, o trabalho em excesso apresentado na faixa e no espetáculo é visto de maneira necessária em outra música do disco Pronto Como um Macaco para ser Lançado ao Espaço (2013), álbum de estreia do grupo que o levou a ser conhecido nacionalmente e residir em São Paulo. Em “Sei Como É”, Eko fala sobre o quanto é difícil se manter na luta mesmo em meio às condições adversas. Mas há espaço para que as dificuldades sejam comparadas à vida escolar e ao jogo Super Mário Bros:
“Não é pessimismo é que o bagulho aqui é bem precário
E pra crescer na vida não é só o cogumelo do Mário
Foda é saber onde chegar, mas não o itinerário
Pessoas desapontam que nem lápis no primário”
De maneira similar, o videoclipe da música “Linha Tênue”, lançada na última semana com participação de Coruja BC1 e Eduardo Oll e produção do curitibano Lucas Pombo, trata da violência, tema característico do rap, mas que ganha nova roupagem na rima de Buneco Emc, que usa a inventividade para falar de uma realidade problemática:
“Na frente do gatilho você sente o medo puro
Te senta o dedo, ainda mais se for um dedo duro
Lugar onde os heróis faz a orquestra de berro
Nenhum tem peito de aço e nem testa de ferro
Esse é os tipo que vira lenda
Eu vejo os tira à venda, tira o deles mas ninguém tira a venda”
Como se vê, tanto o Teatro de Comédia do Paraná quanto Atentado Napalm conseguem ressignificar o riso e, com criatividade, fazer com que possamos engolir temas indigestos ao cumprir aquilo que Horácio atribui como as funções da arte: deleitar e instruir.
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