Uma peça escrita em torno de 1590 que inspirou um filme de 1989, que inspirou uma música de 2012.
Esse foi o caminho percorrido por Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare, até chegar à música “Sociedade dos Poetas Mortos” do MC Funkero, que se baseia no filme de mesmo nome e que foi o responsável por dar o tom de tragédia a uma comédia.
Mas, apesar da transformação pela qual as obras passaram ao serem reapropriadas e reinterpretadas, se mantém comum o choque entre a razão e a emoção.
Isso porque se na peça shakespeariana estão presentes as leis atenienses e a autoridade paterna que impedem Lisandro e Hérmia de concretizarem seu amor, na obra dirigida por Peter Weir a mesma severidade paternal e o rigor da Universidade Welton são os fatores que impedem o jovem Neil Perry de seguir a sua paixão pelo teatro, afeto esse demonstrado na composição musical por meio de um beijo no ceifeiro.
Esse antagonismo acontece na obra cinematográfica e na peça por meio de personagens que representam a razão e lutam para manter a ordem enquanto os representantes da emoção são responsáveis por levar os demais para um outro mundo. Já na música que compõe o disco baseado integralmente em filmes a temática da morte, que poderia ser vista como um tom de lamento, ganha uma visão racional, adquirida pela distância de quem vê a vida como um passado e a enxerga de maneira mais apurada. É o que se nota no verso inicial: “O tempo é rei, e permanece inabalável / O que passou, tá vivo porque é intocável / Em meio a livros, discos, filmes e revistas Marvel / Na época que minha mente era mais instável”.
‘Só que o tempo muitas vezes é um rei desleal /
Vai na história que tu cria e muda todo o final /
Entre as 4 estações, entre chegada e partida /
O beijo da morte que talvez seja o segredo dessa vida’
Mc Funkero – Sociedade dos Poetas Mortos
Como se vê, o eu lírico presente na letra do rapper que tem influências do funk, o que fica mais explícito na sua primeira mixtape, Poesia Marginal (2008), olha para trás e reconhece com lucidez a razão adquirida com o tempo, aceitando o fato de que no passado o seu comportamento não era tão equilibrado quanto agora. Mas, se a oposição entre a razão e a emoção se dão dentro do próprio eu lírico na letra, em Shakespeare o enrijecimento está representado pelo Duque, Teseu, e o pai de Hérmia, Egeu, enquanto o mundo fantástico é representado pelos personagens da floresta encantada, como Oberon, Titânia, Puck e todas as fadas e seres fantasiosos. Nesse cruzamento sofrem a ação do embate entre os dois universos Lisandro, Hérmia, Demétrio e Helena, além dos artesãos que se deslocam até a floresta para ensaiar uma peça e acabam por protagonizar as principais cenas de comédia na obra do bardo inglês.
Já na Sociedade dos Poetas Mortos a autoridade é representada essencialmente pelo diretor da escola Welton, Sr. Nolan, o corpo docente e os pais dos alunos, que em sua grande parte também foram estudantes daquela escola e enviam seus filhos para lá a fim de servi-los com a mesma disciplina que tiveram em seu período de estudante e os tornaram profissionais respeitados, sendo todos em profissões consideradas conservadoras.
Já a emoção vem representada pelo professor John Keating (Robin Willians) que emerge os alunos no universo da poesia e os faz viver baseados em todo o sentimento de paixão pela literatura, adotando como lema o termo conhecido pelas palavras do poeta latino Horácio: o Carpe Diem, tatuado à exaustão e que significa “aproveite o dia”, um ensinamento que na obra musical aparece tarde demais.
No filme, quem sofre a ação do embate são os alunos da escola, que para promover a cisão do mundo rígido e autoritário retomam a sociedade dos poetas mortos, clube ao qual o professor participava em seu período escolar. O deslocamento dos estudantes do real para o imaginário também se dá por meio de uma mudança física no momento em que eles vão para uma floresta, assim como em Shakespeare, mas invés de encontrarem lá seres fantásticos, são as palavras dos escritores que leem que faz com que o toque de magia seja criado.
Na canção esse lado mais positivo é função de Chino (Oriente), que tenta vislumbrar o que há de bom tanto na vida quanto na morte: “Se tu quer, então vai lá, pode ir, levantar, sem cair / Sem tretar e conseguir ir prum lugar, ver sair / A lua refletir, vou partir, vim pra ilha que brilha / Que maravilha estar aqui”.
Essa alegria aparece na peça principalmente por meio do personagem Puck, que com todas as suas trapalhadas também está presente na película durante uma apresentação de teatro na qual é interpretado pelo jovem Neil Perry, quem mais representa o choque entre os dois mundos.
Esse cruzamento entre a doce fantasia e a dura realidade agem de maneira distinta nas criações artísticas. Na peça o resultado é positivo, no filme é trágico, enquanto a música tenta sintetizar esse cruzamento enxergando a beleza no dissabor, amenizando a amargura e renascendo na poesia em corpo e alma.