Qual seria a diferença entre as inscrições encontradas nos muros de Roma no primeiro milênio antes de Cristo e as pichações vistas hoje nas grandes cidades?
Do ponto de vista do registro linguístico, nenhum.
Fontes bastante ricas, as escrituras são um importante documento por retratar o latim vulgar, variação usada pela maioria da população romana durante todos os períodos em que o latim foi a língua de uso antes de ocorrer a sua transformação, que se deu por conta da expansão e a posterior queda do Império Romano.
Entretanto, esse tipo de documentação é uma matriz bastante escassa, uma vez que, além da natural degradação, há ainda o fato de que tais inscrições só poderiam ser feitas por pessoas alfabetizadas, o que corresponderia na época a somente uma elite mais educada. Felizmente, o latim vulgar pode ser detectado também em peças de teatro como as comédias de Plauto e o romance Satyricon, de Petrônio, que tentam reproduzir o uso dessa variante.
No entanto, se esse tipo de notação pública era apenas ligada às altas rodas, como apontam os doutores Renato Miguel Basso e Rodrigo Tadeu Gonçalves no livro História Concisa da Língua Portuguesa, na atualidade, quando a escrita não é mais uma exclusividade, é possível identificar desde pichadores graduados em direito até analfabetos que não conseguem entender a linguagem formal, mas compreendem e produzem a linguagem das ruas por meio desse estilo baseado nas capas de discos de heavy metal, como do Iron Maiden, e que também remontam à caligrafia arábe-gótica, conforme aponta o doutor em sociologia pela universidade Sorbonne, Luciano Spinelli.
Muitos dos pichadores adotam o discurso da anarquia para impor as suas marcas, que hoje são feitas para agredir, mas já passaram por diversas fases, como a política durante o período da ditadura, a poética, a punk, até chegar à expressão de autoafirmação como conhecemos atualmente.
Essa oposição da educação formal entre os pichadores é uma das várias que podem ser vistas no documentário Pixo, de João Wainer e Roberto Oliveira, que se dedica a apresentar a história da pichação em São Paulo e entender, por exemplo, quais são as causas que fazem com que uma pessoa arrisque a própria vida escalando um prédio sem proteção alguma apenas para deixar o seu registro.
Conforme apontado por Spinelli no artigo Pichação e Comunicação: Um Código Sem Regra, os fatores que movem as pessoas a definir como, o quê e onde pichar são individuais e subjetivos, mesmo que haja o agrupamento das crews, grupos que têm o objetivo de trazer a afirmação a um coletivo em meio ao espaço urbano, que divide a sua atenção com a poluição visual institucionalizada das propagandas.
Opostos a elas, muitos dos pichadores adotam o discurso da anarquia para impor as suas marcas, que hoje são feitas para agredir, mas já passaram por diversas fases, como a política durante o período da ditadura, a poética, a punk, até chegar à expressão de autoafirmação como conhecemos atualmente.
Entretanto, mesmo que o documentário de 2009 apresente essa linha do tempo, o que mais chama a atenção no audiovisual é o fato de dar voz no microfone a quem grita nos muros. Adrenalina, afronta, liberdade de expressão, combate às patologias da mente e a originalidade do processo artístico são alguns dos fatores relatados por eles para escolher a pichação como estilo de vida.
Mas, embora as causas sejam tão diversas quanto as letras espalhadas pela cidade, o que documentário mostra em comum no discurso é a relação direta da pichação com o fato de esses grupos terem sido marginalizados pela sociedade e escolherem o muro, a rua, como seu espaço de lazer, reconhecimento e protesto.
Além disso, o vídeo propõe, ou melhor, impõe, o debate da pichação como expressão artística, especialmente no seu encerramento, ao trazer um choque entre o seu fazer formal e informal, colocando essa como uma maneira de transgressão, esquecida comodamente, mas que tem papel fundamental na arte, o que começa linguisticamente quando se diferencia “pichação” e “pixação”, como os próprios escritores urbanos definem.
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