Eu tava lá!
No dia 11 de agosto de 1973, eu estive na primeira festa de hip-hop organizada por Kool Herc e presenciei a criação de uma nova música a partir do jeito de tocar.
Eu vi o movimento nascer como uma oposição à disco music e servir como uma luz para os jovens que sofriam com o desemprego ou o fato de sobreviverem por meio de programas sociais enquanto o Bronx literalmente pegava fogo.
Testemunhei Afrika Bambaataa reunir as gangs e ensinar a juventude a ser guerreira invés de destruidora. Estive na reunião de fundação da Zulu Nation na qual o termo “hip-hop” foi usado pela primeira vez pregando paz, amor, união e diversão.
Depois, contemplei Grandmaster Flash aperfeiçoando a invenção de Herc ao unir técnica e tecnologia.
Mesmo sendo barrado na maioria das festas por causa da minha roupa, que era informal demais, escutei as primeiras rimas do controverso DJ Hollywood.
Acompanhei o Furious Five em suas turnês junto ao Grandmaster Flash e enxerguei o estrondoso sucesso que fazia o primeiro grupo de rap.
Presenciei a febre de todo moleque da quebrada querer ser DJ e se aproveitar dos blecautes no Bronx para furtar equipamentos.
Eu tava lá na batalha épica realizada no Harlem World em que Grandwizard Theodore & The Fantastic Five venceram a disputa com o The Cold Crush Brothers, que posteriormente fez muito sucesso quando as fitas gravadas naquela noite se espalharam e fizeram todos perceberem o talento singular de Grandmaster Caz.
E da mesma maneira que comprei a gravação da grande batalha, adquiri também o primeiro disco de rap em 1979 e ajudei “rapper’s delight” da Sugar Hill Gang se tornar uma música presente em todo canto de Nova York.
Me decepcionei quando descobri que parte da música era plagiada de Grandmaster Caz, bem como me abati quando o gênero ficou saturado. Mas também assisti o seu ressurgimento no centro da cidade junto de pessoas que até então só ouviam punk rock.
Me admirei quando ouvi Blondie cantando “Rapture” em homenagem à Grandmaster Flash e fui abduzido quando pousou no gueto uma nave chamada “Planet rock”. E quando “The Message” chegou até mim o hip-hop passou a mexer mais com a minha cabeça que com meu corpo.
Mas nós que saímos de uma selva que nos fez pensar também chegamos ao status de magnata quando Russell Simmons tornou Kurtis Blow uma estrela e depois fez com que o rap voltasse para a sua área com o Run DMC mandando uma música crua, com batida e rima, e vestindo a roupa que nós vestíamos. Por isso, levantei com orgulho o meu tênis Adidas naquela noite do Madison Square Garden.
E da mesma maneira que observei Simmons orquestrar Blow e Run, também testemunhei Rick Rubin fazer o mesmo com LL Cool Jay e os Beastie Boys, que ganharam o público branco e punk que seria conquistado definitivamente quando o Aerosmith gravou “Walk This Way” com o Run DMC e o tornou o primeiro grupo de rap a chegar na capa da revista Rolling Stone.
E se as técnicas evoluem com o tempo e as pessoas, atestei Marley Marl tornar-se influência para artistas como o DJ Premier e Big Daddy Kane, que só não se tornou tão importante por conta que Eric B. & Rakim trouxeram um tom moderno ao estilo ao incluir flow, conscientização e complexidade no rap.
Me admirei quando ouvi Blondie cantando “Rapture” em homenagem à Grandmaster Flash e fui abduzido quando pousou no gueto uma nave chamada “Planet rock”.
Quando o Public Enemy propôs que lutássemos contra o poder eu aceitei, já que me senti representado da mesma forma quando Ice-T lançou “6 ‘n the mornin’” e deu continuidade ao “rap de realidade” cantado por Schoolly D que resultou no grupo mais poderoso do mundo, a NWA.
E se a música despertou o medo na classe média, em mim ela ajudou a despertar o ódio pelos policiais que espancaram Rodney King e foram absolvidos.
Minha revolta, no entanto, diminuiu quando Dr. Dre lançou The Chronic e mostrou que poderíamos nos divertir mesmo diante das dores que vivíamos em Los Angeles.
A sensação de ter vivido tudo isso é aquela que um adepto do hip-hop tem ao assistir a série documental Hip-hop Evolution.
Disponível na Netflix, o documentário consegue proporcionar aos aficionados pela cultura o sentimento de que o seu espírito sempre esteve ao lado dos pioneiros e de que vivê-la hoje em dia é uma representação de tudo que já foi feito no passado.
E, claro, conhecer a sua história é fundamental. É o que fez o MC canadense Shadrach Kabango, narrador do documentário que nos conduz quando necessário mas que, quando percebemos, nos vemos livres e conversando diretamente com os pioneiros do movimento.
Essa imersão, inclusive, é um dos fatores que faz com que o documentário seja dinâmico, característica que se torna ainda mais forte pelo fato de o audiovisual ser dividido em quatro capítulos de aproximadamente 45 minutos cada, o que faz com que absorvamos 20 anos de cultura rapidamente.
O ponto negativo está presente no fato de que, se propondo a falar de hip-hop, o vídeo se atenha demais ao rap e deixe de lado o graffiti e o breaking, falha que poderá ser corrigida em uma possível segunda temporada.
Até lá, podemos ver, viver e reviver tudo o que foi construído desde a primeira festa em 1973 até o lançamento de The Chronic em 1992.
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