Por muito tempo, o estilo de rap mais conhecido no mundo era aquele em que a mulher aparecia apenas como objeto. Infelizmente, para alguns, essa fase ainda não passou. Contraditoriamente, um gênero nascido da luta contra as diferenças e que usa a arte como expressão dos menos favorecidos acaba também reproduzindo a desigualdade de gênero presente na sociedade.
No entanto, se essa situação existe em parte do movimento hip-hop, é preciso que as mulheres se imponham, rompam o silenciamento e escancarem essa contradição.
Essa é a proposta de Mulheres de Palavra – Um retrato das mulheres no rap de São Paulo. Desenvolvida por Fernanda Allucci, Ketty Valencio e Renata R. Allucci e viabilizada por meio da secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, a publicação apresenta um significativo recorte ao contar com o depoimento de dez mulheres que falam por centenas.
Assim, as cantoras Bia Doxum e Brisa Flow, a jovem DJ Niely, a ex-participante do reality show A Casa Dory de Oliveira, a DJ, MC e produtora Luana Hansen, a responsável pelo primeiro Fórum Nacional de mulheres do Hip-Hop Lunna Rabetti, o grupo Odisseia das Flores, a representativa Preta Rara, a MC Priscilla Fêniks e a pioneira Sharylaine apresentam depoimentos pessoais que carregam muitos pontos em comum.
Entre eles estão os diversos problemas enfrentados na sociedade e no próprio movimento. Entretanto, se há entraves por conta da discriminação, muitas delas enxergam o hip-hop como vital. Por conta disso, a frase “O hip-hop salvou minha vida” é uma constante. Isso porque, entre outros benefícios, a cultura fez com que enxergassem a realidade fora dos padrões de beleza e passassem a se aceitar como mulher e negra. Outro ponto comum é a necessidade da busca constante pelo conhecimento e a sua partilha.
Dessa maneira, é possível reconhecer na obra um caminho trilhado por todas elas. Inicialmente, há uma descoberta na qual a mulher encontra no hip-hop o seu lugar no mundo. Em seguida, surge a desconstrução e a afirmação, período no qual o próprio movimento passa a ser questionado e usado como uma forma de demarcar as suas posições. Já a última fase é aquela que tornou possível que a publicação existisse. É a união e a partilha. Nela as mulheres enxergam como necessário que se fortaleça o elo entre elas para que, juntas, suas vozes tenham ainda mais força.
‘A minha ideia é outra, é expandir, é mostrar que tem gente que muitas vezes nunca foi num show de rap porque sempre foi hostilizado. Eu sei, porque quando faço show, vem gay, bi, trans, me abraçar e falar: eu sempre quis ir a um show de rap, mas eu nunca tive coragem.’
Essa cumplicidade aparece no discurso de duas maneiras. Uma delas é por meio da ajuda direta, mostrando para as demais que aquele espaço também é delas.
É o que faz Luana Hansen: “A minha ideia é outra, é expandir, é mostrar que tem gente que muitas vezes nunca foi num show de rap porque sempre foi hostilizado. Eu sei, porque quando faço show, vem gay, bi, trans, me abraçar e falar: eu sempre quis ir a um show de rap, mas eu nunca tive coragem. Eu só tenho coragem de ir no seu, porque sei que você não vai me tratar mal. Porque o movimento hip-hop é transfóbico, bifóbico, homofóbico, misógino. Existe um ódio em cima da gente, por ser mulher. E isso é um fato”.
Além disso, Luana também procura mostrar para outras mulheres que, além de plateia, elas também podem e devem produzir suas próprias músicas e, se não houver essa possibilidade, ela está disposta a ajudar:
“Qual é a graça de ter um estúdio se você não usar ele pra evoluir? Pra mostrar o rap que a galera ainda não conhece, que é o rap daquela pessoa marginalizada. Porque se é difícil pra mim, que sou lésbica, negra, da periferia, imagine uma mulher negra trans, da periferia, aquele gay afeminado da periferia. Também é difícil pra ele. E aquela mulher branca da periferia? Porque também existe a pessoa branca da periferia. Periferia não só têm nós, negros. Uma grande parte tá lá, mas também tem o oriental, a nordestina, o latino, o boliviano, o africano. Como é que a gente vai fazer? Essas pessoas também precisam ser vistas, lembradas, faladas. A minha função no hip-hop, hoje, é isso. É ter um estúdio e passar pra todo mundo que dá pra ter estúdios igual ao meu e produzindo coisas em vários lugares”.
A função de demonstrar para as demais que também é possível é o que faz a DJ Niely, de apenas 13 anos:
“O que eu tento ser, tento me divertir, tento passar o que eu adquiro, pra poder passar pra minhas amigas também. Elas sempre ficam me perguntando como é ser DJ. E eu vejo que elas se interessam. Quando eu paro pra contar essas coisas, elas ficam prestando atenção. Porque eu mesma fico feliz de tá contando aquilo, e percebo que elas tão felizes de receber e entender de que elas também são capazes de chegar e ir pra aquilo que elas querem. Só elas se inspirarem e correrem atrás, sempre com ajuda, não precisa ser sozinha”.
Já a outra maneira de demonstrar a sororidade pode surgir apenas pelo fato de estarem cantando. Novamente Luana Hansen apresenta um exemplo:
“Pra você ver o poder da palavra. Eu vou no lugar cantar essa música, ‘Ventre Livre de Fato’, e muitas mulheres que fizeram aborto me abraçam chorando. E falam que elas se sentem limpas depois de ouvir a minha música. Porque durante muito tempo elas se sentiam sujas”.
Essa reciprocidade está também presente na carreira de Bia Doxum:
“A música que eu fiz pra coletânea se chama ‘Culpa Minha’, porque eu falo de um assédio, e eu nunca passei por este assédio que eu descrevi. E muitas mulheres, muitas, muitas, vêm até mim, chorando e me agradecendo porque eu descrevi uma sensação que elas sentiram, um momento que elas passaram, sabe? E eu consegui ajudar elas de fato, a vida delas. Pra mim é gratificante poder abraçar uma mulher que se identificou com essa letra”.
Essa identificação, entretanto, vai muito além. Isso porque, de acordo com Brisa Flow, expor a situação feminina e encerrar o silêncio faz com que seja gerado o empoderamento naquelas que ouvem:
“Porque quando a gente passa uma mensagem pra uma menina que tá numa situação de relacionamento abusivo, ou de violência doméstica, ou várias outras questões, que envolvem o universo da mulher oprimida, ela escuta a música, e essa coisa de quebrar o silêncio, dela se empoderar e falar ‘não’. Você escuta um rap que te dá uma força de vontade, você já vai pra guerra diferente. Então eu acho que é a mesma coisa pras mulheres. Acho que a gente não tem que deixar de falar as coisas, não. Porque se a gente não fala, fica nas entrelinhas, fica debaixo do tapete, como ficou anos. E as nossas filhas e as nossas netas vão passar as mesmas coisas. Se a gente não rompe o verbo pela arte, não vai ser rompido de outra forma, a não ser pela militância pela arte”.
Dessa maneira, o ciclo se renova por meio de iniciativas como a da publicação, fazendo com mais mulheres conheçam o poder da palavra e o seu próprio poder.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.