TENSÃO!
Encontro marcado. A melhor roupa. Perfume. As horas são contadas. O telefone não toca. Liga e ela não atende. Pensamentos ruins vêm à mente. Ela retorna e tudo retorna ao normal. Quando o encontro se efetiva, o personagem apaixonado se sente seguro ao lado da amada.
Muda a cena
TENSÃO!
Ele corre como se estivesse sendo o alvo de uma caça na qual os caçadores estão por toda parte. Precisa respirar, mas não há tempo. Suas pernas não aguentam, mas precisa aguentar. Sua vida está em risco e não há para onde fugir. A fuga é cinematográfica.
O rapaz que se encontra aflito devido a um encontro é tema de “A noite é nossa”, do disco Galanga Livre, de Rincon Sapiência, lançado na última quinta-feira (25). Na música, o personagem é laçado pela paixão da mesma maneira que Chris Washington, protagonista de Corra! e interpretado por Daniel Kaluuya, conhecido por parte do público pelo seu papel no episódio “15 milhões de méritos”, em Black Mirror. Da mesma forma, os momentos de tensão em que o personagem é o principal alvo de uma caçada estão presentes tanto no filme quanto no disco, ambos pelo mesmo motivo: o fato de serem negros.
A “herança” da escravidão, embora estejamos distantes dela no tempo (?), continua presente nos dias atuais por meio do racismo que se manifesta em “pequenos” olhares ou até mesmo via caçadas promovidas pelo próprio estado.
Para trazer essa reflexão, a obra cinematográfica manifesta-se como um filme de terror que tem uma premissa pouco provável de ocorrer na realidade. No entanto, ainda que inscrita no campo ficcional, a película traz muitas situações reais com as quais a população negra se depara. A primeira delas se dá perante um policial que atende uma ocorrência na qual Chris e sua namorada Rose Armitage estão envolvidos. No caminho para a casa dos pais de Rose, ela atropela um cervo e o policial pede a carteira de motorista a Chris, embora não fosse ele o motorista. Já no jantar com os pais e o irmão de Rose, o desconforto continua e se amplia no dia seguinte durante aquilo que seria uma grande celebração. Com exceção de um senhor cego, todos os convidados se aproximam de Chris e fazem algum comentário estereotipado.
Esses mesmos convidados participam de um bingo em que a cabeça do jovem está a prêmio. Daí em diante, a apreensão só cresce e o personagem se depara com a necessidade urgente de sair dali correndo, da mesma maneira que Galanga, escravo que matou o senhor do engenho e aparece em fuga na primeira música do disco de Rincon.
Inspirado no personagem do conto fictício de Danilo Albert Ambrosio (também conhecido como…Rincon Sapiência), Galanga diz na canção, composta em parceria com Tom Zé, não ter arrependimento, pelo contrário, sente-se como um herói, uma vez que o assassinato foi uma resposta à repressão. No começo da canção, que tem um ritmo acelerado e simula musicalmente essa fuga, há o relato de que ele gostaria que estivesse tudo em paz entre o seu povo, mas como não foi possível, cometer um crime em nome da sua liberdade foi a única saída, uma vez que as atrocidades cometidas pelo seu inimigo foram ainda maiores: “Meu crime a ele eu culpo / Bateu em criança, cometeu estupro/ Proibiu a dança e a religião / Gerou confusão interna entre o grupo / Cana-de-açúcar e sol quente / Rachando na cuca, ódio na mente / Lembro do seu braço preso no meu dente / (Ah!) Depois não foi um acidente / Preso e vivo, morto e liberto / Logo pensei, um dia te acerto / (Ah!) Ele diz “esse nego é o cão” / Corpo no chão, não foi mais esperto”.
Mas se na estória e na história a fuga de Galanga teria ocorrido nos tempos da escravidão, o primeiro disco de Rincon mostra de maneira bastante coesa que essa fuga ainda ocorre e que o lugar do senhor de engenho foi tomado pelos policiais. Assim, em “Vida Longa”, vê-se o desejo por uma estabilidade depois da fuga, no entanto, ela continua: “O gueto sem incentivo / Na visita os homens de distintivo / É as ruas e os métodos avançados / Mas os homens fardados são primitivos / Eles e nóis é joio e trigo / Amor e justiça é a causa que brigo / Nossa união é sinal de perigo / Então vida longa aos bons amigos”.
E se os policiais podem ser vistos como os senhores de engenho, o transporte coletivo pode ser encarado como os navios negreiros. Assim, em “Volta pra Casa”, que traz uma referência à Thaíde & DJ Hum no seu refrão, são mostradas as dificuldades que o trabalhador brasileiro precisa se submeter.
Dos ônibus para os carros alegóricos, “Meu Bloco” mostra o poder do samba, seu ritmo e atitude, trazendo a música como uma forma de lutar contra a repressão: “Nossa palavra é munição, nossa voz fuzis / Sem moderação, jão, informação use / Sirenes e giroflex, na cara preta luzes / Sugiro, cuidado com os vampiros, cruzes!”.
Do samba para a Ciranda, “Moça Namoradeira” conta com a participação de Lia do Itamaracá e inicia uma série de três músicas que tem o amor como tema. A primeira delas, em terceira pessoa, fala de uma mulher forte que, ainda assim, sofre com os atos do marido. Já em “A noite é nossa”, o narrador do sexo masculino está em primeira pessoa, enquanto em “Amores às escuras”, o relato é de um amor no qual está bastante presente a valorização dos negros.
E é justamente esse enaltecimento que dá o tom em “A Coisa tá Preta”, que desmistifica o uso de uma expressão bastante usada no cotidiano tal qual àquelas presentes no filme do diretor Jordan Peele.
Depois de tratar das diversas formas de preconceito às quais os negros são submetidos, inclusive por meio da palavra, a faixa “Benção” traz um tom mais positivo, como se após ser abençoado, Galanga estivesse realmente livre. Assim, na faixa que dá título ao disco se canta a liberdade de poder correr para onde e como quiser.
‘Meu crime a ele eu culpo / Bateu em criança, cometeu estupro/ Proibiu a dança e a religião / Gerou confusão interna entre o grupo / Cana-de-açúcar e sol quente / Rachando na cuca, ódio na mente / Lembro do seu braço preso no meu dente / (Ah!) Depois não foi um acidente / Preso e vivo, morto e liberto / Logo pensei, um dia te acerto’ – Rincon Sapiência – Crime Bárbaro.
Apesar disso, em “Ostentação à pobreza”, as dificuldades voltam a ser mostradas ao relatar que, apesar de toda a evolução, a pobreza ainda existe e a população negra é a que mais sofre com ela: “O quilombo ainda existe / Saiba que ele não morreu / Falta água porque não choveu / Pedindo pra Deus, fazendo louvor / Quem vive na extrema pobreza / Tem em comum o escuro na cor”.
Encerrando o disco, a magistral “Ponta de Lança”, que já havia sido lançada com um clipe de bastante sucesso, traz entre diversas outras referências o empoderamento: “Quente que nem a chapinha no crespo, não / Crespos tão se armando / Faço questão de botar no meu texto que pretas e pretos estão se amando / Quente que nem o conhaque no copo, sim / Pro santo tamo derrubando / Aquele orgulho que já foi roubado na bola de meia vai recuperando”.
Além de trazer em suas composições a reflexão sobre a afrodescendência, Rincon também o faz por meio do ritmo ao agregar às suas influências de música africana, jamaicana e eletrônica ritmos como a tropicália, o coco, o afrobeat e o rock and roll nas treze faixas produzidas por ele próprio, com exceção de “Amores às Escuras” (Gambia Beats).
Dessa forma, Rincon faz com que o debate sobre a questão racial se dê através de um trabalho magistral que se destaca não apenas no rap nacional, como também na música brasileira.
Por outro lado, Corra! tem boa intenção ao colocar o assunto em pauta, mas o faz de maneira não tão satisfatória ao apresentar um filme que entrega muito menos do que o trailer promete. Assim, os principais momentos de inquietude são aqueles já mostrados na divulgação, fazendo com que boa parte da fita se torne previsível.
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