Sendo o hip-hop parte da cultura do Brasil, Thaíde & DJ Hum deveriam estar presentes nos livros de História, sobretudo nos capítulos dedicados à cultura afro-brasileira.
Mas, se nem todos reconhecem a sua importância, é preciso escrever a própria história e os próprios livros. Por isso, ao completar 30 anos de carreira em 2016, o MC lançou Thaíde – 30 anos Mandando a Letra (Novo Século), escrito e organizado por Gilberto Yoshinaga, reunindo 30 canções que marcaram sua trajetória e a do rap nacional.
Acompanhadas de um texto em que Thaíde conta em primeira pessoa o contexto e os relatos por trás das canções, a obra reconhece e valoriza o legado de um dos seus principais artistas e pioneiros, o que se dá também por meio de um prefácio poético e preciso de Chico César.
Extremamente relevante para conhecer o hip-hop nacional, o livro é ainda recomendado para quem já teve acesso à obra do também ator e apresentador, uma vez que a leitura é capaz de trazer novas percepções que não são possíveis de outra forma.
O principal responsável por isso é Gilberto Yoshinaga, que por meio da organização faz com que o livro se torne um conjunto coeso e possamos vislumbrar uma ligação mais forte entre as letras, que dispostas de maneira diferente dos discos, parecem seguir uma ordem lógica.
Por exemplo, a primeira delas, “Consciência”, traz um eu lírico que fala de um camarada que vai cedo para o céu, enquanto a segunda, “Cláudio (Eu tive um sonho)”, regravada por Marcelo D2, fala justamente de uma pessoa próxima que se foi antes do tempo. Das histórias de terceiros, parte-se para uma mais pessoal, a clássica “Corpo Fechado” e dela para “Homens da Lei”, que fala sobre a violência policial pela qual estão sujeitos os mais pobres e daí para “Pobrema”, em que o eu lírico supera as suas adversidades e incentiva o seu ouvinte a fazer o mesmo.
Dessa forma, partindo de histórias de terceiros, passando pelas pessoais e chegando às questões coletivas e como superá-las, a organização precisa de Yoshinaga faz com que o leitor vá do micro para o macro e do individual para o coletivo.
É o que se dá na parte referente ao disco Pergunte a quem conhece (1989), em que as letras são bastante cruas e diretas e revelam muito sobre o movimento hip-hop e o próprio Thaíde.
E ao longo do livro são muitos Thaídes que se revelam. Além das experiências pessoais, coletivas e de terceiros, há também o conselheiro, o imperativo, que impõe seu posicionamento de maneira forte, o que aponta os problemas sociais, o que valoriza a cultura negra, o que chama para a luta e a conscientização, o que levanta a autoestima do negro e do ser humano e o que, de maneira metanarrativa, conta a história do movimento hip-hop.
Da mesma maneira com que essa disposição se dá no primeiro disco o livro segue de acordo com os demais lançamentos, como em 1990, quando o eu lírico já não é mais tão presunçoso. Ele erra e reconhece seus erros em “Ritmo da Vida”, e é salvo em “Hip-hop na Veia”. E se em uma canção a vida se apresenta como suficiente (“Com oito eu cheirei cola de sapateiro, não gostei do cheiro / Tiroteio, justiceiro, derradeiro momento da minha vida / E não quis continuar / Me ofereceram, também, erva e farinha / Mas eu achava que a vida era a melhor droga que eu tinha”), na outra é demonstrado aquilo que diz Ferreira Gullar, que “A arte existe porque a vida não basta”. Assim, a droga essencial passa a ser o hip-hop. Da cultura hip-hop à cultura negra, “Luz Negra” reúne pela primeira e única vez Thaíde e DJ Hum e Racionais MCs.
E a luz negra que aparece no álbum de 90 brilha na “Noite” no disco de 92, Humildade e Coragem são nossas armas para lutar, em que há a mensagem de que “Algo vai mudar” e uma das maneiras de fazer isso é por meio da comunhão dos homens que faz atingir a comunhão com Deus, ideia exposta em “Não Seja Tolo”. Do coletivo novamente voltamos ao individual em “Nada pode me parar”, e novamente para “Brava Gente”, faixa que dá título ao disco de 1994.
Esse é dedicado sobretudo ao povo brasileiro, trabalhador e lutador. Nele se nota um aumento expressivo no tamanho das letras e em seu conteúdo, passando a agregar mais narrativas. Nesse ponto, cabe a interpretação de que Thaíde teve uma influência direta dos Racionais, que na época já tinham lançado os seus três primeiros trabalhos e faziam sucesso com canções que tinham essas mesmas características. Além disso, a possibilidade se dá também pelo fato de o próprio MC dizer no relato sobre “Algo vai mudar” que a dupla agia de maneira a acompanhar o movimento que o rap seguia.
‘O que fazer se você escolheu assim / Revólver, pó, pedra, covardia, enfim / Uma vida perigosa pra você e pros outros / Que certamente lhe trará o fim’ – Thaíde – Malandragem dá um tempo.
Já em Preste Atenção, há o predomínio de canções autobiográficas e de valorização da cultura afro-brasileira. Entre elas, é interessante saber que o relato de “Mó Treta” é verídico e aconteceu com ele próprio, a quem também se dedica “Desabafo de um Homem Pobre”. De acordo com Thaíde, as letras foram compostas quando ele passava por um mau momento e talvez foi justamente essa má fase que fez com que nascesse um grande disco.
Outra grande criação, talvez o seu ápice, se dá por meio de Assim Caminha a Humanidade (2000). Nele é apresentado um eu lírico que aponta os erros alheios, seja o de quem se deslumbra com a fama ou o dos negros que não se assumem.
Daí em diante, em “Caboclinho Comum”, o cantor apresenta um balanço da vida e da carreira da mesma forma que em “Deus tá contigo”, no entanto, nesta há também a presença de uma continuidade. Talvez a composição que apresente o seu tom mais triste, a canção do primeiro álbum depois de terminada a parceria com DJ Hum, Thaíde Apenas (2006), traz também uma mudança significativa comparada a outras anteriores. Isso porque antes havia a ideia de que o empenho individual resultaria em conquistas, enquanto nesta o êxito está fortemente atrelado à existência de um ser supremo.
Essas dificuldades que aparecem na música podem ser vistas como superadas em “Não adianta”, que se mostra como um incentivo ao ouvinte.
Já em “Respeito é pra quem?”, há uma volta ao começo da carreira com o ar genioso de “Corpo Fechado”. Esse movimento cíclico está também na letra que encerra o livro, “Hip-hop Puro”, do álbum Vamo que vamo que o som não pode parar (2016). Nela, há uma nuance saudosista em que são mostradas as diferenças do hip-hop atual e do passado, especialmente quanto aos valores que se perderam.
Duas Faces
Entre as diversas facetas apresentadas, é interessante notar as diferenças em duas delas, a do conselheiro e a do presunçoso.
‘Estou sempre na minha, sou muito paciente / Seja claro comigo, não perturbe a minha mente / Quando eu quero alguma coisa, eu vou até o fim / E vou te dar um conselho: não duvide de mim’ – Thaíde – Nada pode me Parar.
Este pode ser visto em “Corpo Fechado” (1989) e “Nada Pode me Parar” (1992). Na primeira, que serve como uma apresentação do artista, ele se mostra como alguém solidário, mas que não deve ser ultrajado: “Tenho um coração mole, mas também sou vingativo / Portanto, pense bem se quer aprontar comigo / Se achas que esse neguinho sua bronca logo esquece / Então não perca tempo, pergunte a quem conhece”.
Esse posicionamento está também marcado na canção posterior: “Maldade não é minha intenção / Mas, se mexer comigo, te farei pedir perdão / Estou sempre na minha, sou muito paciente / Seja claro comigo, não perturbe a minha mente / Quando eu quero alguma coisa, eu vou até o fim / E vou te dar um conselho: não duvide de mim”.
Esse conselho, entretanto, assume outro sentido em “Consciência”, primeira música gravada por ele e que serve como advertência: “Você fala demais, você é vacilão / Você só dá mancada e não ajuda os irmãos / Vou dizer uma coisa que é pra você aprender / A mão que afaga também pode bater / Só estou dizendo isso porque gosto de você / Você é meu amigo, não posso te ver sofrer”.
Já em “Malandragem dá um tempo”, o conselheiro é mais próximo e afetivo, posição que ganha mais sentido ao saber que a letra foi dedicada a um primo. A intimidade e preocupação assim se apresentam: “E você não precisa mentir pra mim / Dizendo que a sua família tá bem a pampa / Faz uma cara que você não dá notícias em casa / Se acaba de graça com os manos da sua banca / O que fazer se você escolheu assim / Revólver, pó, pedra, covardia, enfim / Uma vida perigosa pra você e pros outros / Que certamente lhe trará o fim / Há muito que venho observando o seu movimento / Malandragem dá um tempo”.
No álbum posterior a esse, em que ele revela ter passado por um período ruim em sua vida particular, o calvário se mostra como a gênese que resultou no homem maduro de “Siga seu caminho em paz”. Na composição, o homem feito se coloca na posição de poder indicar os erros alheios a partir de uma reflexão sobre si próprio, e mostra que a valorização da vida é o caminho a ser seguido: “Dizem que sou um cara muito chato / Desconfiado, acostumado a vencer pelo cansaço / Tenho 32, me sinto muito bem / Quero que muitos cheguem e passem dos 32, também / Baseado em fatos que eu mesmo vivi / Prefiro ficar sossegado, pelo menos assim / Adianto o meu sem atrasar o dos outros / Muitos se deixam levar quando estão no sufoco / Sonham que estão no mar de rosas / Quando acordam, percebem que estão no fundo do poço / Com a corda no pescoço”.
Dessa maneira, essas e diversas outras faces de Thaíde são apresentados no livro que serve para compreender não só a sua obra, mas também a história do hip-hop e do Brasil.
THAÍDE – 30 ANOS MANDANDO A LETRA | Gilberto Yoshinaga
Editora: Novo Século;
Tamanho: 160 páginas;
Lançamento: Setembro, 2016.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.