Em 2010, durante um debate no Salão de Ideias da Bienal Internacional do Livro de São Paulo, o cineasta José Mojica Marins criticou duramente a moda de filmes de vampiros da época, encabeçada pela série Crepúsculo (2008). “Vampirinho não diz coisa nenhuma”, disse. “Temos lendas fantásticas, preto velho, boitatá, saci… Não precisamos copiar nada de ninguém.”
A fala repercutiu bastante na mídia (leia mais). Era irônico porque o próprio criador do Zé do Caixão nunca havia feito um filme sobre aquele folclore brasileiro do qual falava. A situação mudaria em meados de 2013, depois que o cineasta Rodrigo Aragão o convidou para dirigir um dos segmentos de Fábulas Negras (2014), uma antologia de curtas sobre os mitos nacionais. O episódio de Mojica era sobre o saci.

Na produção capixaba, uma moça, vivida por Carol Aragão, encontra a criatura de um pé só durante uma passagem pelo bambuzal. Depois disso, passa a ser assombrada pela imagem do saci a ponto de enlouquecer. O monstro é uma das criações mais famosas de Aragão, que compôs o visual clássico misturado a uma aparência apodrecida e tomada pela vegetação da floresta.
Não deixa de ser triste perceber que o personagem, tão importante ao imaginário nacional, tenha tão pouca participação na nossa filmografia.
Essa não foi a primeira aparição do negro de uma perna só no cinema brasileiro de horror. Em 2008, o cineasta Christian Saghaard lançou O Fim da Picada. A produção é um grande delírio sobre a vida contemporânea e a cultura brasileira, misturando viagens no tempo, consumo de alucinógenos e participações especiais de diretores da Boca do Lixo. Um dos pontos mais importantes da narrativa é a presença de um menino de rua, que leva um tiro na perna, entra e uma caixa de madeira na mata e se torna um saci. O personagem é responsável por um acidente de trânsito, que violentamente arranca a cabeça da motorista.
Além desses títulos, a criatura folclórica vai aparecer em pelo menos mais um longa-metragem fundamental na filmografia brasileira. Trata-se do filme O Saci (1951), de Rodolfo Nanni. A obra adapta o livro homônimo de Monteiro Lobato. Sua exibição nos cinemas de interior é associada à popularização do Sítio do Pica-Pau Amarelo no imaginário popular, visto que foi a primeira adaptação em carne e osso dos personagens.
Na trama de O Saci, Pedrinho descobre que existe mesmo o tal negro de uma perna só vivendo dentro de redemoinhos na mata-virgem ao lado do sítio. Para mostrar que é valente, decide caçá-lo, apesar dos apelos de Tia Nastácia. Depois que coloca o monstro dentro de uma garrafa de vidro, o menino descobre que o prisioneiro é, na verdade, um bom sujeito, que o ajuda a resgatar Narizinho das mãos da Cuca.

As três produções apresentam faces bastante distintas para o mito do saci, ora representando-o como uma criatura benéfica, ora maligna. Essa dualidade é própria de suas aparições nos relatos populares. Em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, o historiador Câmara Cascudo comenta que, desde o século XIX, o homem de uma perna só surge com feições diferentes em cada região do Brasil – nem sempre vinculado à etnia negra, inclusive. Às vezes, ele aparece como um maldoso sujeito, que pode provocar malefícios onde estiver. Em outros momentos, é apenas um garoto brincalhão e gracioso.
Não deixa de ser triste perceber que o personagem, tão importante ao imaginário nacional, tenha tão pouca participação na nossa filmografia. O mais irônico é que o saci já foi o símbolo do cinema brasileiro, representando a estatueta da maior premiação cinematográfica do país entre as décadas de 1950 e 1970. O Prêmio Saci, organizado pelo jornal O Estado de S. Paulo, tinha o troféu desenhado pelo artista plástico Victor Brecheret. Era honra de poucos levar um deles para casa.
Em 2018 foi anunciado que o saci viraria tema de um filme de horror britânico (leia mais). Planejado pela produtora Hindsight Media, que financiou O Discurso do Rei (2010), o projeto tem roteiro de Nate Atkins, que assinou o roteiro de S. Darko – Um Conto de Donnie Darko (2009). Talvez o personagem seja mais comentado por aqui depois desse lançamento.
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Há uma série de curtas-metragens envolvendo o saci no audiovisual brasileiro. O pesquisador Andriolli Costa levantou alguns deles para seu projeto O Caçador de Sacis. Confira quais são clicando aqui.