Nosso repertório afeta a maneira como nos relacionamos com certos produtos culturais. O sentido da fotografia de Neil Armstrong com o pé na lua muda quando pensamos em Stanley Kubrick. Há pudor na afirmação de que O Triunfo da Vontade (1935) é um grande filme, “apesar do nazismo”. Dificilmente veremos a atuação de Johnny Depp da mesma forma quando nos lembramos do roxo no rosto de Amber Heard.
Uma obra marginalizada pode crescer quando o diretor apresenta o conceito que criou para cada cena. Um grande sucesso vira objeto de análise se o público descobre detalhes escondidos pela produção. Para mim, isso ocorreu diversas vezes com Tubarão (1974), filme de horror de Steven Spielberg que catapultou o status do gênero para o mainstream.
Quando criança, achava que era uma história de monstro tradicional. Depois, idolatrei a produção pela presença de Spielberg, um dos primeiros cineastas que conheci pelo nome. A informação de que o diretor improvisou cenas em cima de um tubarão mecânico que não funcionava direito só elevava sua aura de gênio que nunca toma café.
Ao ler a análise de Pauline Kael sobre a metáfora implícita da fragilidade masculina, o subtexto mudou. Havia algo escondido no drama da cidade de Amity, atacada frequentemente por um peixe sanguinário (leia mais). Em 2015, quando a editora Darkside relançou o livro de Peter Benchley, descobri mais: Tubarão se tornou uma parábola sobre o capitalismo, discretamente disfarçada de horror de natureza. No prefácio da edição, há, inclusive, uma citação de Fidel Castro elogiando a obra por isso.
Enquanto ambienta a trama em uma cidade de veraneio povoada por turistas, Benchley expõe as vísceras de uma economia frágil – que fica a beira da extinção por causa de um peixe.
Enquanto ambienta a trama em uma cidade de veraneio povoada por turistas, Benchley expõe as vísceras de uma economia frágil – que fica a beira da extinção por causa de um peixe. Um dos focos do material original é o casamento de Brody, ameaçado pela presença de Hooper, um sedutor biólogo marinho que investiga os ataques na praia. Ao contrário da imagem boa praça de Richard Dreyfuss, o livro pinta o personagem como um sujeito arrogante e de ética questionável.
Nenhuma obra é tão avassaladora ao transformar a compreensão do público sobre Tubarão quanto The Jaws Log, de Carl Gottlieb, que terminei de ler recentemente. Também roteirista do filme, o autor escreve um diário em que relata os desafios da produção com detalhes. Em sua narrativa, os bastidores da obra foram um pesadelo. A começar pela ideia de filmar o terceiro ato inteiramente no mar, algo nunca feito até então (e desde então).
Os problemas da equipe de efeitos visuais ganham contornos de tragédia anunciada. Nada funciona da maneira que devia. Em certo momento, com semanas de prazo estourado, Robert Shaw aparece bêbado no set. Spielberg surta. Os produtores pressionam. O término das filmagens é marcado por Dreyfuss comemorando aos berros que finalmente havia acabado.
Pelas palavras de Gottlieb, fica difícil imaginar como o longa-metragem deu certo. Boa parte do mito envolvendo os percalços na realização do filme vem de The Jaws Log, lançado no ano seguinte da estreia do blockbuster.
Essas percepções não poderiam estar mais distante do primeiro contato que tive com a obra. Um amigo, fanático por Spielberg, afirmou certa vez que queria esperar alguns anos para ver se conseguia reviver a sensação que teve ao ver Tubarão pela primeira vez, nos idos de 1980. Entre nós, acho que ele queria o impossível.