Será Bambino a Roma um romance de memórias? Desde a capa, o subtítulo sinaliza tratar-se de uma obra de ficção — informação reiterada na ficha catalográfica. Mas não há como ignorar que, sob o disfarce da ficção, pulsa uma narrativa profundamente ancorada na memória, na experiência e, sobretudo, na própria construção da lembrança.
Nos 29 capítulos breves — 24 deles situados na Roma dos anos 1953 e 1954 —, Chico Buarque revisita a infância, compondo uma cartografia afetiva que alterna cenas banais e episódios marcantes: as idas à quitanda, os jogos de bola, os percursos pela cidade, as aulas na escola americana, as amizades e os primeiros desejos. Entre os rostos que atravessam a narrativa, destacam-se Amadeo, filho do quitandeiro e amigo inseparável, e Sandrene, amor platônico do menino Francisco — ou “Francesco”, como era chamado pelos colegas romanos.
Bambino a Roma ecoa outros títulos do autor, como Budapeste, Leite Derramado, O Irmão Alemão e Essa Gente. Também aqui a escrita em primeira pessoa reflete sobre seus próprios mecanismos, intercalando lembranças, digressões e uma permanente dúvida sobre os limites entre aquilo que se viveu e aquilo que se inventa. Nem sempre o narrador se nomeia, mas sabemos que acompanha a mudança da família para Roma, motivada pela atividade acadêmica do pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda.

Em tom ora nostálgico, ora irônico, o narrador revisita episódios que ajudam a compor não só o retrato da infância, mas também o ambiente político e social da época. A morte de Stálin, o suicídio de Getúlio e o saudosismo de vizinhos que lamentam o fim da era Mussolini atravessam discretamente o cotidiano do garoto e de sua família antifascista.
A construção da narrativa — capítulos curtos, organizados quase como esboços — dialoga com o próprio funcionamento da memória, que seleciona, ordena e, inevitavelmente, preenche lacunas com imaginação. Não por acaso, o narrador sublinha seu desconforto com os truques da ficção, mas também se diverte com eles.
A construção da narrativa — capítulos curtos, organizados quase como esboços — dialoga com o próprio funcionamento da memória, que seleciona, ordena e, inevitavelmente, preenche lacunas com imaginação.
O olhar sobre o pai reaparece com ambivalência já conhecida dos leitores de O Irmão Alemão: admiração e distanciamento. Entre a ternura e a crítica, surge a lembrança do som incessante da máquina de escrever — metáfora da ausência paterna — e até a citação direta à possível existência de um meio-irmão alemão, fruto de um romance extraconjugal de Sérgio Buarque.
Mas é no capítulo 22 que talvez se concentre a imagem mais poética do livro: o jovem Francisco, mapa de Roma nas mãos, desenha obsessivamente os caminhos recém-percorridos, até que o papel, gasto pelo uso, precise ser substituído. Sobre o novo mapa, começa a projetar sua cidade imaginária — antecipando, sem saber, o arquiteto frustrado e o escritor que viria a ser.
A todo instante, Bambino a Roma tensiona as fronteiras entre recordar e narrar, entre memória e fabulação. Nos capítulos finais, já adulto, Francisco volta a Roma, em 2024, na tentativa de reencontrar não só os lugares da infância, mas também o próprio menino que um dia foi. Como se, no fundo, o romance inteiro fosse um exercício de arquitetura da memória — e da ficção.
BAMBINO A ROMA | Chico Buarque
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 168 págs.;
Lançamento: Julho, 2024.
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