Diante do modo burocrático com que o nazista Adolf Eichmann descrevia suas ações nos campos de concentração, a filósofa alemã Hannah Arendt propôs a ideia de “banalização do mal”. No julgamento relatado no livro Eichmann em Jerusalém, assinado pela autora, o ex-membro do Terceiro Reich apresentou a si mesmo como um funcionário que obedecia às tarefas que lhe eram passadas.
O duro exemplo histórico serve para nos lembrar que o mal nem sempre adquire as facetas horríveis que povoam nosso imaginário. Em A Forma da Água, produção que levou o Oscar de Melhor Filme este ano, o vilão vivido por Michael Shannon é um pai de família, que trabalha para o exército e cumpre ordens em busca de um lugar que considera mais digno para sua carreira.
O horror apenas nos oferece percepções fantásticas sobre o tema. A ficção nunca será comparável às experiências horríveis do mundo real, sempre mais assustadoras.
No cinema de horror, estamos acostumados a nos deparar com a literalidade do monstro na repugnância e no perigoso. Drácula, Freddy Krueger e Pazuzu são clássicos exemplos de essência do mal. Algumas ameaças do gênero – como em Alien – O Oitavo Passageiro (1979), O Nevoeiro (2007) e O Monstro da Lagoa Negra (1954) – são forças da natureza. Outras, como Frankenstein (1934) e A Mosca (1986), são frutos de infelizes circunstâncias.
O monstro carismático, racional e pragmático não é normativo nesse tipo de história. Há, porém, ótimos exemplos de como o horror se apropriou da banalização do mal. O diretor Alfred Hitchcock frequentemente criava assassinos que tinham planos burocráticos, que não dimensionam a gravidade de uma morte (esse é o papel do espectador). Os protagonistas de Festim Diabólico (1948) matam um colega de classe como parte de um experimento. O vilão de Pacto Sinistro (1951) planeja a morte de duas mulheres como uma troca, a ser negociada com um estranho em um trem.
Às vezes, mesmo psicopatas perturbados por abusos, como Norman Bates, agem de forma automática cumprindo as tarefas impostas pelo ambiente. Simpático e sedutor, o estranho personagem limpa a sujeira da mãe imaginária ao se livrar do corpo de Marion Crane, com quem flertava horas antes, em Psicose (1960).
É na banalidade da morte que age também o executivo Patrick Bateman, em Psicopata Americano (2000). Entre a rotina de Wall Street e uma agitada e fútil vida social, ele desmembra prostitutas e colegas de trabalho sem que isso tenha qualquer remorso ou impacto em seu dia a dia. O doentio comportamento, que pode ou não ser um delírio, evidencia o vazio de significado de sua própria existência.
Outro galante monstro burocrata é o psiquiatra canibal Hannibal Lecter, de O Silêncio dos Inocentes (1991). Quando comenta casos de assassinatos, ele fala com uma curiosa indiferença. Suas vítimas, quando não vão para o prato por incomodá-lo com trivialidades (como um músico que desafina em uma orquestra), parecem acidentes do acaso.
Em nenhum desses filmes, no entanto, a narrativa é tão dura quanto a relatada por Arendt em seu livro. O horror apenas nos oferece percepções fantásticas sobre o tema. A ficção nunca será comparável às experiências horríveis do mundo real, sempre mais assustadoras.