Histórias que se repetem demais no cinema geralmente entram em crise muito rápido e começam a se reinventar. O excesso de narrativas de super-heróis, por exemplo, passa a render títulos novos, que exploram diferentes abordagens, flertam com novos gêneros e se tornam estranhamente metalinguísticos – vide Deadpool 2 (2018).
No horror, um tipo de trama que passou do seu ponto de saturação é do filme de zumbi. Nos últimos quinze anos, os mortos-vivos foram vistos em comédias românticas, em dramas sobre paternidade e em adaptações de romances vitorianos de Jane Austen. Há três anos, cheguei a escrever que essa abundância de enredos fez com que essas produções perdessem o charme (leia mais).
Ocasionalmente, porém, aparece uma produção que desafia minha opinião. O coreano Invasão Zumbi (2016) é um ótimo exemplo de uma narrativa inventiva, que usa o ritmo, o cenário e a dinâmica dos personagens para recontar a história de uma invasão zumbi envolvente e divertida.
Cargo dialoga com um vasto repertório de obras do gênero, chegando a recriar momentos bem semelhantes aos de A Noite dos Mortos-Vivos (1968), de George Romero.
O recente Cargo (2018) passa por um caminho semelhante. A obra australiana, que chegou na semana passada à Netflix, é uma adaptação (extensão) de um curta-metragem homônimo de 2013, dirigido pela dupla Ben Howling e Yolanda Ramke. Na história original, um pai acorda de um acidente de carro, em que é mordido pela esposa morta-viva e precisa levar a filha bebê em um suporte nas costas enquanto se transforma em zumbi.
O filme, de sete minutos, circulou por vários festivais e se tornou um fenômeno no YouTube. Pouco tempo depois, os diretores foram convidados a levar o projeto para o cinema. A contratação de Martin Freeman (da cinessérie O Hobbit) como protagonista ajudou a alavancar o interesse pela produção, que chamou a atenção da Netflix, que financiou e distribuiu o título internacionalmente.
Na adaptação, a história cresceu em termos temáticos. O arco do pai que precisa salvar a filha cresceu e a trama acrescentou temas como colonização europeia, exploração de recursos naturais e valorização de tradições aborígenes australianos. Em muitos aspectos, o debate antropológico é o mesmo do filme Austrália (2008), em um enredo mais curto e eficiente.
Em entrevistas, Howling e Yolanda afirmaram que queriam repensar a estética e o formato da narrativa clássica de zumbi. Por isso, Cargo dialoga com um vasto repertório de obras do gênero, chegando a recriar momentos bem semelhantes aos de A Noite dos Mortos-Vivos (1968), de George Romero. Da intertextualidade, surge algo novo, que se apoia numa iconografia conhecida – o recente Um Lugar Silencioso (2018) faz a mesma coisa.
Para se diferenciar dos clichês, os cineastas se apegam à imagem do pai em deterioração que carrega a filha nas costas no deserto australiano. É esse retrato, emocional e original em sua essência, que conduz a trama de sobrevivência. Provavelmente, é ele que fará a obra ser lembrada pelo público, que, se estiver na mesma situação que eu, anda com dificuldade para distinguir um filme de zumbi do outro.