Em 2013, um pastor evangélico postou um vídeo no YouTube (veja aqui) em que afirmava que ver filmes de horror era o equivalente a convidar o diabo para visitar a casa do espectador. O disparate vinha acompanhado de um trecho da Bíblia, que citava que Jesus “não deixava falar demônios falar, porque o conheciam” (Marcos 1:34).
A mensagem religiosa se tornou um discreto viral nas redes sociais na época, sendo basicamente ridicularizado pelos usuários. De um certo modo, o vídeo acaba refletindo uma preocupação comum com a ideia de que os cristãos estão, no dia a dia, se associando com o demônio de forma inconsciente.
No livro O Diabo no Imaginário Cristão, o historiador Carlos Roberto Nogueira explica que Satã é uma construção social usada pelo cristianismo para afastar seus seguidores de outras religiões. A ideia da culpa, a simbologia da serpente e as tentações foram sendo agregadas ao mito do anjo caído ao longo do tempo, até que Lúcifer se tornasse o formidável inimigo dos cristãos.
Foi na baixa Idade Média, por volta do século XIII, que a igreja católica passou a usar o Tinhoso como uma estratégia do medo. De lá para cá, fundamentalistas tem adotado o Capeta para queimar bruxas, enforcar inocentes e acabar com reputações políticas. Tudo amplamente difundido sob a égide da moral e dos costumes das pessoas de bem.

O filme Amaldiçoado (Horns, 2013) parece nadar contra essa correnteza. A produção tem Daniel Radcliffe (o eterno Harry Potter) como um jovem que, depois de ser acusado de assassinar a namorada, acorda com chifres e poderes sobrenaturais. Como o próprio Satanás, o personagem consegue despertar os piores instintos das pessoas, que não mentem e não repreendem seus desejos.
O carisma de Radcliffe parece ajudar para que o espectador torça pela figura demoníaca do filme. Isso fica mais fácil com a vilanização dos cristãos ao longo da trama.
A habilidade e a aparência chifruda transformam o personagem em um herói, que decide investigar o assassinato da amada após perceber que seus familiares, conhecidos e amigos não conseguem mais mentir. Gosto de imaginá-lo como alguém que dá livre-arbítrio aos gulosos, homossexuais e piromaníacos, que teriam sido repreendidos diante da palavra do Senhor.
O carisma do ator ajuda na construção do aspecto profana do filme. Torcemos pelo personagem de Radcliffe, que, lá pelas tantas, decide punir os pecadores que agem intencionalmente contra os outros. O diretor Alexandre Aja, do remake de Piranha (2010), parece se divertir com a ideia de que o Capiroto foi um sujeito injustiçado por regras engessadas do cristianismo. O verdadeiro vilão, aliás, se esconde por trás de um crucifixo, que lhe deixa imune aos poderes do protagonista.
Amaldiçoado, que chegou esta semana ao Netflix, é uma adaptação bastante fiel do livro O Pacto, de Joe Hill. O escritor também é filho de Stephen King, o que pode explicar a desconfiança com signos religiosos e a intolerância com o estilo superficial dos moradores das idílicas cidades do interior dos Estados Unidos, retratados aqui como hipócritas e mentirosos.
O horror dessa estranha produção é exercido pelos cristãos que, com exceção da vítima, estão sempre julgando antes da hora e perpetuando seus pecados em silêncio. Pelo menos o diabo é sincero, parece nos dizer Aja. Não que eu ache que isso o livre das potenciais perseguições dos pastores.
http://www.youtube.com/watch?v=YyKpNGbbwSs