Em 2017, o cineasta brasileiro Gurcius Gewdner apresentou seu longa-metragem Pazucus: A Ilha do Descarrego (2017) em uma das sessões da Semana dos Realizadores, no Rio de Janeiro. Depois da exibição, o diretor foi abordado por um membro do público, que o confrontou irritado: “Como você tem coragem de mostrar um filme desses em público? Se eu fosse você, me matava!”
A reação exagerada provocou um misto de divertimento e incômodo no artista. Realizador independente desde a adolescência, Gurcius meio que se acostumou a receber reações negativas da plateia, a maioria em tom de brincadeira. Durante anos, circulou por circuitos independentes com Mamilos em Chamas (2008), seu primeiro longa metragem, filmado com a carcaça putrefata de dois coelhos abatidos no açougue. Pazucus: A Ilha do Descarrego conta a história de um sujeito de Florianópolis que sente dores no estômago e ouve as vozes das próprias fezes. Tem monstros, cenas de escatologia e o enredo dialoga diretamente com o cinema experimental.
Além de um exímio provocador, o cineasta se tornou um nome importante no cinema nacional de gênero. Além dos próprios longas e de duas dezenas de curtas, ele também tem uma carreira sólida como editor. Trabalhou com cineastas como Ivan Cardoso, diretor de As Sete Vampiras (1986), e Petter Baistorf, de Zombio 2 – Chimarrão Zombies (2013). Em entrevista à Escotilha, Gurcius discutiu o que busca com suas peculiares produções e comentou um pouco das parcerias com outros diretores.
Escotilha » Você faz filme para chocar o público?
Gurcius Gewdner » Para mim, o que eu faço não é tão chocante. Quem tá fazendo acha divertido [risos]. Eu mudaria o termo de choque para provocação. Daí não precisa ser uma imagem violenta ou escatológica, mas uma imagem que discute o próprio meio em que você tá produzindo sua arte e o seu filme.
Como você descreveria sua própria obra?
Acho que dá para chamar de videoarte. Nunca fui uma pessoa que esconde as próprias referências do cinema e o tipo que eu mais tenho paixão tem a ver com o que eu faço. É o caso do cinema do leste europeu, do cinema cyberpunk japonês, do cinema transgressor americano da década de 1970 e do cinema de invenção no Brasil. Acho que faço filmes de obsessão. O John Waters fala que você não é nada na vida se não for obcecado.
Mas sua obra é marcada pela escatologia…
A escatologia é daquelas coisas que não são exatamente planejadas, mas quando tu vê já tem um histórico [risos]. Isso é uma influência de cinema, da afinidade com a obra do John Waters, do Pier Paolo Pasolini e do Dušan Makavejev. Os filmes deles te provocam como espectador, pois destroem sua zona de conforto. Isso me interessa muito. É a coisa de você agradecer pelo que te ofende. Um tipo de expressão de arte que vai te tirar do trilho ao ponto de você não conseguir dormir depois de ver. Esses filmes acendem uma faísca no cérebro e te deixam meio descontrolado.
Uma vez você disse que adoraria lançar um filme a cada duas semanas, para que as pessoas não dessem tanta atenção ao formato e vissem sua obra mais como um compilado de videoclipes. Você pensa seu cinema como efêmero?
Disse isso por causa da frustração pela experiência de fazer filmes sem orçamento. O Pazucus tem mais orçamento, o que não quer dizer muito. O orçamento foi maior que zero [risos]. Com mais dinheiro, tive mais tempo para finalizar. Essa coisa de fazer um filme em duas semanas é porque é muito mais fácil filmar do que finalizar. O ideal é que a edição tome um tempo. Levei nove meses finalizando o Pazucus. Nesse tempo, precisei ganhar dinheiro de algum outro lugar. Gostaria, sinceramente, de lançar um longa por ano. Isso é possível com dinheiro. Você escreve o filme em dois meses, leva mais quatro meses filmando e usa o resto do ano para editar.
A escatologia é daquelas coisas que não são exatamente planejadas, mas quando tu vê já tem um histórico [risos]. Isso é uma influência de cinema, da afinidade com a obra do John Waters, do Pier Paolo Pasolini e do Dušan Makavejev. Os filmes deles te provocam como espectador, pois destroem sua zona de conforto. Isso me interessa muito. É a coisa de você agradecer pelo que te ofende.
E ainda teria que encontrar o público…
É verdade. Quando eu dizia esse negócio das duas semanas, também falava sobre o grande trabalho que é fazer teu filme existir depois de pronto. É uma das partes mais difíceis para qualquer realizador. Isso exige tempo e dedicação. Acho que meu curta Bom Dia Carlos (2015) e o Pazucus são bem acabados, pude pensar melhor neles e o resultado foi que eles giraram mais por festivais.
Como você fazia para seus filmes serem vistos quando você começou?
Antes de começar a fazer filmes para valer, a partir de 2003, eu era muito envolvido com a música. Eu tinha um conjunto musical em que a gente jogava lixo na galera. Esses shows são meio lendários no submundo. Gravamos vários discos. Quando comecei a fazer meus filmes, já tinha alguma fama dessa experiência com a música.
Você acha que um filme como Mamilos em Chamas seria feito hoje?
Quando alguém diz que hoje em dia isso não seria feito, sempre fico em dúvida. Eu não faria um filme assim, até porque já fiz [risos]. Em 1975, quando alguém lançou um filme polêmico, podem ter dito que não poderia ser feito, mas foi. Estou falando mais de cinema de transgressão e não exatamente de fazer filme com carne podre [risos]. Ninguém mais precisa desse tipo de filme. Não quero incentivar [risos].
Você tem duas parcerias importantes dentro do cinema de gênero, uma delas é com o cineasta catarinense Petter Baiestorf. Como é a relação de vocês?
Somos muito irmãos e amigos. Ele surgiu num período muito interessante da década de 1990, quando o cinema brasileiro tava meio morto. Começou a fazer filmes em vídeo e foi influente para muita gente. Sou formado em História, mas minha faculdade de cinema foi com a Canibal Filmes. Aprendi muito sobre edição desde que comecei a montar filmes para o Baiestorf, em 2005. A gente está sempre em contato.
E sua relação com o Ivan Cardoso?
Conheci o Ivan num festival em que eu estava exibindo uma prévia de Mamilos em Chamas. Isso foi em 2006. Obviamente já era fã dos filmes dele e rolou uma sintonia criativa. Fizemos um curta numa oficina do festival. Depois, trabalhei como assistente dando uma mão com o arquivo fotográfico até que ele descobriu que eu sabia montar filme.
Daí nasceu O Bacanal do Diabo e Outras Fitas Proibidas de Ivan Cardoso (2013)?
Isso. Ele tinha uma série de filmes inacabados e foi mapeando o acervo, vendo o que não tinha terminado e foi terminando. Ao mesmo tempo, tinha umas coisas que produziu nos anos 2000. Pegamos esses curtas e juntamos em O Bacanal do Diabo. Depois, ainda fizemos O Colírio do Corman, que é um filme experimental de intervenção na película. O Ivan ainda tá finalizando esse e não liberou para o mundo ver.
Você também tem um filme inacabado chamado Viatti Arrabbiati…
Estou com ele na ilha de edição e adoraria finalizar este ano. Lutando por isso, mas para montar um filme com esmero e a atenção que merece, preciso de tempo. Comecei a filmar no início de 2011. Aí me mudei de Santa Catarina para o Rio de Janeiro. Em 2014, fiz mais algumas filmagens e em 2017 rodamos mais uns acréscimos. O protagonista, inclusive, tem barba branca, o que não tinha no início das filmagens [risos]. Preciso lançar antes que todo mundo esteja velho.