As narrativas de zumbi possuem uma fórmula bastante estreita. Com pequenas variações, uma história dessas precisa estabelecer que corpos – de pessoas vivas ou mortas – perdem consciência e atuam sob um instinto canibal. Esse comportamento deve ser contagioso e espalhado pelo contato com os infectados em um cenário que tende ao apocalipse. George A. Romero criou as regras no filme que melhor as representa em A Noite dos Mortos-Vivos (1968).
Mesmo que aparentemente rígidos, os enredos de zumbi renderam uma enxurrada de produções ao longo das últimas décadas. Filmes de ação, comédia e drama usaram de cadáveres esfomeados como recursos para inovar nos títulos do subgênero. A sobrevida dessas narrativas gerou uma sensação de saturação no público, mas também rendeu obras excepcionais recentemente. Especialmente fora dos Estados Unidos.
A sobrevida das narrativas de zumbi gerou uma sensação de saturação no público, mas também rendeu obras excepcionais recentemente.
O coreano Invasão Zumbi (2016), o brasileiro Mata Negra (2018) e o australiano Cargo (2018) são apenas alguns exemplos que já comentei nesta coluna, mas existem outros tão incríveis quanto esses que merecem atenção. O primeiro deles talvez seja o britânico Anna e o Apocalipse (2018), um musical adolescente natalino de horror. A salada de gêneros tem claras influências de Todo Mundo Quase Morto (2004) e foi dirigida por John McPhail. Na produção, um grupo de jovens, na véspera do Natal, enfrenta uma infestação de zumbis e lida com os sentimentos típicos de sua idade.
A trama brinca com as expectativas do público. Enquanto mostra um número musical aos moldes de High School Musical (2006), construindo um romance platônico entre um casal de amigos, as letras alertam o público que “aquela não é a história com a qual estamos sonhando”. Logo, o desfecho do relacionamento está longe de ser o final feliz.
A metalinguagem caracteriza Anna e o Apocalipse como um comentário sobre a própria condição das narrativas de zumbi. Como existem muitas delas, os personagens têm consciência do tipo de ação que podem tomar e, como os próprios espectadores, sabem quais são as regras estabelecidas dentro do subgênero. “Estamos em um apocalipse zumbi”, diz um personagem, visivelmente empolgado, ao melhor amigo.
Igualmente consciente de si mesmo é a comédia japonesa Plano-Sequência dos Mortos (2018), de Shin’ichirô Ueda e Shinichiro Ueda. A trama mostra uma equipe de filmagens tentando rodar um longa-metragem de zumbi quando as gravações são interrompidas por mortos-vivos de verdade, que atacam os atores e a maquiadora.
Parte da produção é filmada em um único plano, repleto de erros de continuidade e efeitos visuais absurdamente pobres. Com a trama é dividida em dois arcos narrativos bastante distintos (cujos segredos em torno deles são fundamentais para a experiência de assisti-lo), as “liberdades criativas” com o subgênero são explicadas para o público – de uma forma bastante cativante, aliás.
Sem tantas pretensões metalinguísticas, o francês A Noite Devorou o Mundo (2018) usa do cânone zumbi para construir um filme introspectivo. Em muitos aspectos, a obra dirigida por Dominique Rocher recria a atmosfera de isolamento da primeira metade do livro Eu Sou a Lenda, de Richard Matheson. Na trama, durante uma festa, um homem adormece em um dos quartos do apartamento e acorda com uma Paris dominada por mortos-vivos.
Ao invés de se aventurar para fora do prédio, ele decide trancar-se no local, exercitando-se e adaptando sua rotina à nova condição. A monotonia da trama, que parece intencional, explora um aspecto urbano e intimista de um fenômeno fantástico que conhecemos tão bem. É original e funciona. Só por isso, já vale dar uma conferida.