Em maio de 1975, o jornal Notícias Populares estampou a manchete “Nasceu o Diabo em São Paulo”. A edição esgotou rapidamente nas bancas. O sucesso levou os jornalistas e editores da publicação a investir na história por quase um mês. O tal filho do capiroto aparecia em telhados, enlouquecia mulheres e pedia que os taxistas o levassem ao inferno.
As matérias sobre o bebê-diabo se tornaram bastante emblemáticas para a trajetória da imprensa brasileira. Tudo não passou de uma grande invenção concebida dentro da redação do NP, como revelado no livro Nada Mais que a Verdade: a extraordinária história do Notícias Populares (2011). Isso não impediu que a repercussão social do nascimento fosse intensa.
No mundo contemporâneo, visitamos a zona crepuscular por meio de filmes, seriados e livros de horror. E a realidade se alimenta desse consumo da ficção.
No documentário Nasceu o Bebê Diabo em São Paulo (2002), a diretora Renata Druck mostra que o caso deixou vestígios no imaginário coletivo. Vários testemunhos afirmam que o anticristo realmente andou entre os brasileiros naquele período. Em uma das cenas do filme, o jornalista Ivan Finotti ouve várias reclamações sobre os transtornos provocados pela mentira ao hospital em que trabalhava.
As aparições do bebê-diabo, assim com os fantasmas do Edifício Joelma (leia mais), são um bom exemplo de como existe uma linha tênue entre a ficção e a realidade. Na semana passada, chamei esse ponto intermediário de zona crepuscular, com base na ideia de twilight zone proposta por Rod Serling (leia mais).
Esse ambiente de interação com o fantástico, como demonstra o caso descrito acima, permite que uma história bizarra como a do bebê-diabo tenha adesão de verdade na sociedade paulista da década de 1970. Essa veracidade conquistada não é definitiva. Muitas vezes, é apenas uma breve fuga da racionalidade. No cinema, é o espaço da suspensão da descrença, quando esquecemos que estamos diante de um monstro inventado e experimentamos o medo.
Ao tentar explicar como o imaginário monstruoso era algo profundamente enraizado na sociedade europeia do século 18, a historiadora Mary Del Priore, no livro Esquecidos por Deus (2000), parece citar um local semelhante à zona crepuscular. “O diabo, como suas crias, os vampiros e os fantasmas, era, por excelência, habitante de um universo insondável, lugar em que o normal desaparecia em benefício de fenômenos incompreensíveis, espaço em que os limites físicos, mas também morais, do homem se eclipsavam.”
No mundo contemporâneo, visitamos esse universo insondável em filmes, seriados e livros de horror. E a realidade se alimenta desse consumo da ficção. Em 1974, um ano antes da chegada do bebê-diabo ao Brasil, estreia O Exorcista (1973) no país. A divulgação antecipada do longa-metragem de William Friedkin leva José Mojica Marins, o Zé do Caixão, a dirigir Exorcismo Negro (1974) para aproveitar a curiosidade do público.
Quando o Notícias Populares publica a fictícia história do nascimento do filho de Satã, o ciclo de produção de obras sobre o demônio, que se inicia em O Bebê de Rosemary (1968), estava no auge. A circulação dessas manifestações culturais certamente afeta o imaginário social. Por consequência, afeta também nossa relação com o mundo.