No início dos anos 1970, George Romero não era um celebrado nome do horror. Sua obra-prima, A Noite dos Mortos Vivos (1968), dava passos lentos para se tornar um clássico do cinema independente. Para pagar as contas, o cineasta se envolvia em projetos como a série documental The Winners. O programa apresentava a vida e a carreira de estrelas do esportes nos Estados Unidos. Entre elas, O.J. Simpson.
Uma aproximação forçada entre o controverso jogador de futebol americano e o cineasta pode se mostrar bastante irônica. Nos seus filmes, Romero tece comentários sobre banalização da violência, excesso de consumo e racismo. Em Despertar dos Mortos (1978), há uma cena quase panfletária em que policiais atiram primeiro e perguntam depois em um prédio habitado por negros.
Imediatamente após ser acusado do crime, Simpson foi percebido pela sociedade como um símbolo das injustiças cometidas por uma sociedade majoritariamente branca e repressora.
É justamente esse tipo de comportamento policial abusivo que provoca as revoltas raciais de Los Angeles em 1992, após um grupo de guardas espancar um taxista negro que dirigia acima da velocidade. Dois anos depois, os tumultuados protestos do período ainda estavam no imaginário da população local quando O.J. foi preso como principal (e único) suspeito de assassinar a mulher, Nicole Brown, e um amigo.
O crime voltou aos holofotes da cultura midiática este ano. Parte do retorno se deve à American Crime Story: The People v. O.J. (leia aqui nossa crítica), série antológica criada por Ryan Murphy que retoma os principais acontecimentos do julgamento que absolveu o ex-jogador dos crimes. Na esteira, veio a exibição do extenso documentário O.J.: Made in America (2016) na ESPM. Os brasileiros ainda puderam mergulhar mais no caso com a publicação de American Crime Story: O Povo Contra O.J. Simpson, de Jeffrey Toobin.
Lançado pela editora Darkside, o livro-reportagem de Toobin é considerado um dos relatos mais completos já feitos sobre o julgamento. O autor serviu como consultor do programa de Murphy e é um dos entrevistados do filme da ESPM. Na obra, ele investiga como o suspeito foi, gradativamente, se tornando uma peça-chave nos conflitos raciais em Los Angeles.
Imediatamente após ser acusado do crime, Simpson foi percebido pela sociedade como um símbolo das injustiças cometidas por uma sociedade majoritariamente branca e repressora. Como era negro, parecia estranho torná-lo mais escuro para a capa de uma edição especial sobre o assassinato na revista Time. O mesmo vale para o fato de ter sido algemado do lado de fora da casa logo após o crime. Dirigir de forma incoerente em um Ford Bronco escoltado por viaturas só corroborou para a imagem de mártir gradativamente traçada pela mídia.
No julgamento, a defesa do ex-jogador decidiu apostar fortemente na ideia de que havia uma conspiração racial da polícia, majoritariamente branca e repressora. O atleta, que nunca havia se envolvido em debates étnicos até então, acabou inocentado. Ele era uma representação de resistência ao violento preconceito policial da época.
O circo foi acompanhado pelo mundo inteiro. Ainda hoje, o julgamento gera conversas de bares sobre detalhes do caso e intimidades dos bastidores. Um retrato recente de Simpson, como o da série da ESPM, não costuma deixar dúvidas de que ele cometeu crime. Tratava-se de um homem de muitas faces. Por um lado, era uma pessoa carismática, que fazia rir com as gags de Corra que a Polícia Vem Aí. Por outro, era um ser sombrio, que espancava a mulher e ainda a culpava pelas escoriações no rosto.
Como se tentasse refletir sobre o caso de Simpson, George Romero voltaria à questão racial em Terra dos Mortos (2005). O único negro da trama é um zumbi, que lidera um grupo de corpos ambulantes e esfomeados em uma rebelião contra o mundo dos brancos depois de assistir a um massacre perpetrado por uma milícia armada. O desfecho do conflito é insatisfatório para ambos os lados. Não resolve os problemas étnicos-sociais da trama, mas acalma as massas furiosas que esperavam algum tipo de compensação pelas injúrias que sofreram ao longo da vida.