Em uma entrevista para a revista Fangoria, em 1984, o escritor Clive Barker afirmou que desde criança se sentia seguro nas narrativas de horror fantástico. “Sempre achei que pertencia ao lado dos monstros”, explicou. Essa relação do autor com o gênero ganha novos contornos quando se leva em consideração sua própria sexualidade. Integrante da comunidade LGBTQI, o criador de Hellraiser sentia-se excluído e pouco representado pelas histórias que lia quando criança. Chegou a torcer pela Sra. Bates na primeira vez em que viu Psicose (1960), tamanha sua desconexão com os protagonistas.
A representação de pessoas LGBTs dentro dos filmes de horror nunca foi muito ideal. O gênero já tratou a homossexualidade como monstruosa em inúmeras ocasiões. Mesmo assim, há uma parcela do público queer que se identifica fortemente com esse tipo de produção. Ainda que essas representações estejam passando por uma mudança, vide a crescente popularidade do termo queer horror (leia mais), considero que ainda é preciso refletir muito sobre o modo como o gênero lida com as diferentes orientações sexuais. Para discutir isso com mais propriedade e não fugir do meu lugar de fala, convidei seis pessoas da comunidade LGBTQI – que consomem e refletem sobre as narrativas de horror – para comentar suas percepções sobre o tema.
Os entrevistados foram o crítico de cinema Marcelo Carrad, do canal de YouTube Cinema Ferox; a escritora Michelle Henriques, do podcast The Witching Hour; o escritor Márcio Benjamin, autor do livro Fome (2017); a pesquisadora e escritora Fabrina Martinez; o pesquisador Álvaro de Souza, do blog Babadook Gay; e a escritora e roteirista Deborah Happ, da Revista Fantástika 451. Como característica comum, os seis revelam que se tornaram consumidores de horror ainda na infância e encontram conforto nessas narrativas.
Duas perguntas nortearam a discussão com os entrevistados. A primeira delas é o que os atrai para o gênero. A segunda é se o gênero é, de fato, acolhedor para pessoas LGBTQI. Confira as respostas abaixo:
Escotilha » O que mais te atrai nas narrativas de horror?
» Marcelo Carrad
A possibilidade de descobrir mundos desconhecidos, mergulhar nas trevas da alma humana, além da prazerosa sensação de sentir medo dentro de uma sala escura de Cinema ou diante da TV no sofá aqui de casa.
» Michelle Henriques
A Simone Weil tem uma fala que eu acho maravilhosa: “O mal imaginário é fascinante e variado; o mal real é sombrio, monótono, estéril, entediante”. Acho que isso resume bem como me sinto em relação ao horror. Os horrores da vida real são deprimentes, tristes, opressores. É divertido ver um cara com uma motosserra no lugar da mão, sabe? Fugir do horror real por meio do imaginário.
» Márcio Benjamin
O que mais me atrai no gênero é a catarse que o terror faz com a gente. Essa quase morte. Leva a gente a um extremo e você volta e aprende a rever certos pontos da sua vida. Você vê alguém pior e fica mais pensativo em relação às coisas. É uma sensação de montanha-russa. Também tem a forma como se avalia o sobrenatural. Como é suculento essa coisa de adentrar novos mundos e poder olhar a realidade com os olhos de um monstro.
» Fabrina Maritnez
Tem uma coisa que sempre comento quando me perguntam o que mais me atrai no gênero: é a calma que me traz. Pode parecer absurdo, mas a Shirley Jackson tem uma frase maravilhosa que diz que nenhum ser vivo sobrevive a condições de extrema realidade. O horror é muito de trabalhar com analogias, metáforas e subtextos sobre coisas que as pessoas têm uma profunda e nociva dificuldade em falar. Para nós, que vivemos de forma tão ligada ao gênero, isso não é uma novidade, mas para as outras pessoas é. O que me atrai no horror é o conforto. O que é meio absurdo, reconheço.
» Álvaro de Souza
Várias coisas me atraem no terror. Acho que é um gênero que permite muita liberdade e inventividade para quem trabalha com ele. Também gosto de toda a montanha-russa emocional que esses filmes podem proporcionar. Acho que talvez o que mais me atrai é a forma como ele consegue trabalhar com as ansiedades sociais de uma forma que nem sempre é óbvia ao usar o fantástico e o grotesco para ressaltar certos absurdos ou peculiaridades da nossa época.
» Deborah Happ
Eu gosto de horror, porque é um gênero que escancara o pior das pessoas. É um terreno que dá pra viver nossos piores pesadelos e ser completamente sincero sobre o que a gente quer e do que a gente tem medo. acho isso muito potente.
Escotilha » Você acha que o horror é um gênero que acolhe o público LGBT? Por quê?
» Marcelo Carrad
Atualmente, a inclusão pode ser mais percebida, mas historicamente o horror tem sido um Gênero Cinematográfico que tem em sua representação, um universo heteronormativo e branco. Existe um protagonismo maior do Gênero Feminino de uns tempos para cá. Mas a inclusão LGBTQIA é mais rara, pelo preconceito de que esse público não consome Cinema Fantástico, o que não é verdade. Existe um público LGBTQIA muito expressivo que adora Cinema Fantástico e cultura Nerd/Geek/Gamer. É um público que comparece em peso em eventos como a CCXP, por exemplo.
» Michelle Henriques
Não, não acolhe mulheres, nem pessoas LGBTs, nem pessoas gordas. É um gênero ainda predominantemente machista, com homens brancos e héteros sempre nos explicando filmes, não ouvindo a nossa opinião e ainda debochando de nossos comentários. De uns anos para cá, tenho conhecido muitas mulheres, pessoas não-brancas e não-héteros fãs do gênero, e sinto um respiro. Espero que nosso espaço seja respeitado logo de uma vez.
» Márcio Benjamin
Acho que está melhorando, mas ainda é muito pouco. A representatividade ainda é um pouco ausente, mas a gente precisa fincar o nosso lugar enquanto LGBT. Primeiro porque os direitos são iguais enquanto cidadãos, mas também porque somos um público consumidor muito voraz. As empresas precisam acordar para isso. Há um grande retorno em termos financeiros, mas falta muita representação. Além disso, é preciso representar o mundo real. Não é possível que você, como uma pessoa civilizada, não tenha no seu círculo de amizades nenhum LGBT. Há uma necessidade de representar de forma coerente. Esses personagens LGBT precisam ser um reflexo da realidade. Isso vai auxiliar muita gente nesse processo de descoberta e na consolidação do orgulho.
» Fabrina Maritnez
O que fico pensando toda vez que eu vejo um filme ou uma série que tem um personagem LGBT é que existe quase uma justificativa para aquele personagem. Isso me incomoda. É como se fosse um universo à parte, um elemento a mais do horror, do infamiliar e do estranho. E não é assim. [A sexualidade] é uma parte do que a pessoa é. Falta muito essa naturalidade. Acho que as séries estão abordando isso de um jeito melhor [do que os filmes]. Algumas personagens tem uma bissexualidade que não precisa ser explicada ou justificada. Só existe e ponto. Mesmo assim, quando me volto para o gênero, não vejo nada nesse ponto de normalidade. É algo que pega muito para mim e que não acho que seja acolhedor.
» Álvaro de Souza
Não sei dizer se é um gênero que conscientemente abraça o público LGBTQ+, mas sem dúvidas exerce um fascínio imenso nessa parcela da população. O público LGBTQ+, no geral, tem uma relação muito curiosa com o cinema (com as mídias no geral na verdade). Nós nos apegamos a personagens, detalhes e temas e, não raras as vezes, criamos a nossa própria versão deles. No documentário Scream, Queen! My Nightmare on Elm Street (2019), o pesquisador Andrew Schamill diz que o público LGBTQ está acostumado a ignorar certos pontos da história e criar o seu próprio filme na cabeça. O terror não necessariamente é um gênero generoso com personagens LGBT. Não raras as vezes, personagens assim são tratados como moralmente questionáveis quando não perigosos (vide Silêncio dos Inocentes e Vestida para Matar), mas é um gênero que trabalha muito com o medo do outro, do que não compreendemos e isso algo que fácil para que a gente se identifique. Não é difícil achar pessoas LGBT que identificam com o monstro de Frankenstein, com Carrie e com outras figuras que deveriam ser o alvo do terror. Ao mesmo tempo em que podemos achar triste só nos enxergarmos na posição de vilões, também tem algo de estranhamente empoderador em se ver em algo que é uma ameaça para um mundo heterossexual, cristão e capitalista. Andrew Schamill diz que deveríamos ver nisso uma espécie de possibilidade de outros tipos de existência.
» Deborah Happ
Então, acho isso complicado. Deveria, já que é um gênero que desmonta tabus. Acho que, principalmente na literatura e nos quadrinhos, tem um espaço enorme para pessoas queer se colocarem, falarem de si. Mas, enquanto mulher lésbica (ou só como mulher), eu sempre me senti muito fetichizada em filmes de terror. Por um lado, era um dos únicos lugares que eu podia ver mulheres se beijando, mas era muito voltado para o olhar masculino e nunca era uma relação de verdade, de carinho. Claro que o público em geral sempre foi muito machista e homofóbico, o que não ajuda muito. Mas isso está mudando. Ano passado participei da artist alley da Horror Expo e uma boa parte do público era feito por mulheres e pessoas queer.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Para continuar a existir, Escotilha precisa que você assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Se preferir, pode enviar um PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.