Um chinês convida uma prostituta que acabou de conhecer para um programa. Ela aceita, com a condição de que ele lhe pague um pastel. Na lanchonete, a moça descobre que seu cliente é um famoso pasteleiro, responsável por uma receita refinada de sucesso, cujo segredo é a misteriosa carne que vai dentro da massa. O casal vai para a casa do chinês, onde ele a mata, estupra seu cadáver e o transforma no recheio do celebrado prato.
O enredo de “O Pasteleiro”, um dos episódios do filme Aqui, Tarados (1981), é bastante perturbador. Além de ser filmado pelo diretor David Cardoso como uma comédia, a narrativa de pouco mais de meia hora é repleta de nudez e cenas de necrofilia – que por pouco não são explícitas, como observa Lúcio Franciscis dos Reis Piedade em uma análise da obra no livro Cinema de Bordas.
Hoje, as transgressões do curta-metragem parecem bem ofensivas pelo uso excessivo de estereótipos e de uma evidente objetificação do corpo feminino. De qualquer forma, o episódio é um inegável marco do cinema de horror nacional, protagonizado por um dos maiores nomes do gênero no Brasil na década de 1980: o cineasta e ator John Doo.
Nascido na China e naturalizado brasileiro, Doo se tornou um bem-sucedido diretor de pornochanchadas, tipo de produção imperativa no cinema nacional nas décadas de 1970 e 1980. O gênero, tremendamente popular, consistia em criar tramas escrachadas e fáceis de filmar, apelando para muita nudez e cenas de sexo.
O sobrenatural era contrabandeado para dentro dessas produções eróticas, muitas vezes como meras desculpas narrativas. Um exemplo é a história dirigida por Doo para a antologia A Noite das Taras (1980). No episódio “A Carta de Érico”, um marinheiro tenta entregar um envelope para uma mulher, que está prestes a cortar os pulsos (nua) dentro de uma banheira. A mensagem foi enviado pelo tal Érico do título, mas a moça não reconhece o nome. O casal acaba indo para a cama e ela desiste de se matar. Depois de transarem, os amantes percebem que a carta estava vazia. A última cena mostra o túmulo de Érico, dando a entender para o público que o autor da mensagem estava morto o tempo todo.
Com ciclo de produção de pornochanchadas, os realizadores da Boca do Lixo paulista se apropriaram do gênero e lançaram uma leva de títulos sobre possessão demoníaca, mulheres vingativas e slashers.
Até meados da década de 1970, o horror era basicamente um sinônimo de Zé do Caixão no Brasil. Com ciclo de produção de pornochanchadas, os realizadores da Boca do Lixo paulista se apropriaram do gênero e lançaram uma leva de títulos sobre possessão demoníaca, mulheres vingativas e slashers. Como afirma Laura Cánepa, em sua referenciada tese Medo de que?: uma historia do horror nos filmes brasileiros, a mistura de violência e sexo virou uma fórmula de sucesso para o período. A Força dos Sentidos (1979), Matador Sexual (1979) e O Castelo das Taras (1982) são alguns dos títulos que exemplificam esse momento da filmografia horrífica brasileira.
John Doo era um nome proeminente do núcleo de produção da Boca do Lixo. Colega de Ody Fraga e David Cardoso, ele seria responsável por dirigir Ninfas Diabólicas (1978), Uma Estranha História de Amor (1979) e Excitação Diabólica (1981).
Além de “O Pasteleiro”, talvez a contribuição mais significativa de Doo ao horror nacional seja o curta-metragem “O Gafanhoto”, presente na antologia Pornô! (1981), lançado do mesmo ano em que Aqui, Tarados (1981). Na narrativa fantástica, o cineasta conta a história de Diana (Zélia Diniz), uma feiticeira que só enxerga pelos espelhos de sua casa. Debilitada, ela vive com uma empregada e Marcos (Arthur Roveder), um sujeito tratado como seu prisioneiro e escravo sexual.
Um dia, ele encontra um gafanhoto que decide usar para estimulá-la sexualmente. Ela fica ainda mais excitada com o inseto. Indignado, ele decide fugir, quebrando os espelhos da casa. A feiticeira se recupera e o mata, ficando na companhia exclusiva do bichinho, que se torna seu novo brinquedo sexual.
A zoofilia de “O Gafanhoto” soma-se a uma série de imagens que brincam com o jogo de reflexos e uma ambientação bastante claustrofóbica. Trata-se de uma história de bruxaria, com elementos de perversão típicos do período. O conceito, quase surrealista, é incrivelmente original e o episódio funciona como uma pequena pérola do gênero, escondida a olhos vistos no meio de uma parte bem marginalizada da cinematografia nacional.
Publicado originalmente na revista Aterrorizados, na edição de março deste ano.