A campanha de divulgação de A Primeira Noite de Crime (2018) começou com um cartaz que estampava a imagem de um boné vermelho com os dizeres “The First Purge”, o título original do filme. O objeto era uma referência direta ao adereço e ao slogan de Donald Trump em sua campanha presidencial em 2016, quando prometia fazer os Estados Unidos novamente grandioso (Make America Great Again).
Essa não foi a única alusão ao atual quadro político norte-americano feita pelo mais recente exemplar da franquia criada por James DeMonaco, cuja trama mostra como foi implantado o feriado sangrento – em que, durante 12 horas, crimes de qualquer natureza, incluindo assassinatos, se tornam legalmente aceitos no país. A narrativa também referencia as práticas de desinformação de seu governo e ironiza expressões do presidente norte-americano – uma personagem xinga um agressor de “pussy-grabber” em alusão ao comentário vazado de Trump em que se vangloria de pegar as mulheres pelas genitálias.
Com quatro filmes e um seriado, The Purge foi, aos poucos, se tornando um complexo tratado da política contemporânea. Na superfície, esses produtos funcionam como sanguinolentas narrativas de ação aos moldes de Os Selvagens da Noite (1979). Não é difícil, porém, perceber como os enredos são construídos a partir de uma crítica à moral aos costumes do conservadorismo contemporâneo.
No primeiro filme, de 2013, Ethan Hawke e Lena Headey vivem um casal de subúrbio que lucra com equipamentos de segurança que os protegem da noite de crimes. Durante uma dessas ocasiões, o filho deles dá abrigo a um negro, vítima de uma série de jovens brancos de classe média que celebravam seu direito ao expurgo. A partir daí, a história trata de temas como o isolamento social das elites econômicas, a cultura do armamento e as disputas de poderes da oligarquia americana.
No fundo, ‘The Purge’ uma metáfora ao próprio capitalismo, que protege elites, mas é profundamente violento com o restante da população.
DeMonaco, que dirigiu os três primeiros títulos da franquia e ainda serve de showrunner para o seriado, disse que teve a ideia após a esposa dizer que deveria haver um dia em que o assassinato fosse permitido. O comentário virou um roteiro, vendido para o produtor Jason Blum. Inicialmente, o conceito de Uma Noite de Crime era vago e deixava pontas abertas para explorar os limites da proposta – que ecoa elementos de 1984, de George Orwell.
Em Anarquia, a sequência de 2014, o diretor expandiu o expurgo para a periferia de uma cidade grande. O local é o alvo preferencial dos adeptos da política de extermínio, justamente por ser habitado pelas camadas mais pobres da população, que incluem minorias, como latinos e negros. A produção também indicou que crimes legalizados faziam parte de uma política de controle econômico e social das populações, ao mostrar milícias contratadas pelo governo que estimulam as mortes.
Lançado em 2016, o terceiro filme, que recebeu o título bizarro de 12 Horas para Sobreviver: Ano de Eleição desenvolve melhor os impactos financeiros e culturais do feriado sangrento. Parte do núcleo da trama mostra pequenos comerciantes lidando com ataques durante a fatídica noite, enquanto uma senadora concorre à presidência dos Estados Unidos com a promessa de extinguir o evento anual.
A Primeira Noite de Crime tenta vislumbrar como o projeto todo seria possível na nossa sociedade, ao caracterizá-lo inicialmente como um experimento social que ocorre em uma comunidade carente de Staten Island, em Nova York. Dirigido por Gerard McMurray, um cineasta negro, o capítulo ganha tons raciais mais explícitos e praticamente se assume como um panfleto partidário contra o governo Trump (apesar de DeMonaco ter recusado a associação direta ao republicano).
Já no seriado, disponível no Brasil pela Amazon Prime, somos apresentados a uma série de personagens que enfrentam diferentes aspectos do expurgo. Militares desacreditados com o governo, líderes religiosos salafrários e membros da sociedade que veem a si mesmos como isentos dos crimes por não participarem são alguns dos tipos sociais representados ao longo dos 10 episódios da primeira temporada. Talvez o estereótipo mais simbólico da série esteja no personagem de Lee Tergensen, Joe, que personifica o eleitor conservador que acredita nas políticas totalitárias de estado e vê a si mesmo como alguém que foi injustiçado pelas pessoas que o cercam (mas nunca enxerga que o problema é o sistema em que vive).
Em todos esses produtos, as máscaras que caracterizam os algozes parecem dialogar com a ausência de um rosto para o problema da violência social contemporânea. A presença de múltiplos personagens, dos quais temos dificuldade para lembrar detalhes algumas horas depois de assistirmos aos filmes, parece recusar o heróico individualismo típico das narrativas industriais americanas. Em The Purge, o problema é de toda sociedade que vive sob a bandeira dos Estados Unidos. No fundo, trata-se de uma metáfora ao próprio capitalismo, que protege elites, mas é profundamente violento com o restante da população.