Eu nunca me casei formalmente e quando minha mãe se deu conta de que eu formaria uma família mesmo sem os protocolos despachou-me uma caixa com o enxoval. Entre jogos de lençol e toalhas havia alguns panos bordados por ela e por minha avó, guardados durante anos no fundo do armário.
Achava aquilo tudo meio antiquado, pra não dizer brega, mas as toalhinhas e centros de mesas teimavam em aparecer pela casa toda vez que diarista estava inspirada ou que minha mãe me visitava.
Corta, passam-se vinte e poucos anos.
Num mundo tecnológico, no qual os consumidores se veem tentados a resgatar o valor emocional das coisas, não é de se espantar que o handmade entre como um alívio acachapante nas roupas e acessórios, bandeira inclusive para as grifes de luxo.
O estilista mineiro Ronaldo Fraga nunca abriu mão de mostrar as sutilezas dos regionalismos e do artesanato brasileiros mesmo quando isso não representava tendência de moda.
O estilista mineiro Ronaldo Fraga nunca abriu mão de mostrar as sutilezas dos regionalismos e do artesanato brasileiros mesmo quando isso não representava tendência de moda.
Seus desfiles são sempre coloridos e emocionantes, imprimindo um significado real para cada tema.
Sua coleção de verão 2009 fez uma homenagem ao Rio São Francisco, um trabalho tão belo e impactante que se desdobrou em uma exposição.
Para criar os trajes, Ronaldo foi até a cidade ribeirinha de Pirapora, no interior de Minas, para conhecer o trabalho das bordadeiras do ICAD, um instituto que utiliza o artesanato como veículo de promoção social, resgate da autoestima e geração de renda, principalmente de mulheres.
Por trás do ICAD está o grupo Matizes Dumont, formado por uma linhagem de bordadeiras da mesma família. Essas artistas transgridem qualquer imagem que possamos ter do bordado artesanal, tornando o ato de bordar uma grande metáfora do que é viver. São desenhos espontâneos, cheios de cor e texturas, que incitam quem borda a colocar no tecido sua história, sentimentos, sonhos…
O reconhecimento dos 50 anos do Matizes Dumont vem não apenas no seu trabalho de base junto às comunidades, mas também de artistas que deixaram nas mãos dessas bordadeiras páginas de livros e roupas tão preciosas quanto as de Ronaldo Fraga. Telas do grupo ilustram obras de grandes autores como Jorge Amado, Ziraldo, Manoel de Barros, Rubem Alves e a capa do disco Pirata, de Maria Bethânia.
Sávia Dumont é uma das “matizes”. Sanitarista, educadora, uma senhora jovial que adora contar histórias. Ela desembarcou em Curitiba esta semana para uma concorrida oficina de bordado na Casa Tangente. As sessões são em forma de roda, onde o ensinar e o aprender se dão entre risadas e causos. “O bordado mostra como você é delicada, grosseira, transgressora, como sabe a hora de chegar e partir, a hora de bordar e parar. O bordado mostra o que você é”, diz Sávia com seu acento mineiro.
Depois que recebeu o resultado de sua encomenda – sem que tivesse imposto ou pedido qualquer coisa – Ronaldo Fraga se impactou com o quão sofisticado o bordado pode ser.
Segundo Sávia, elaboração e planejamento fazem com que o trabalho fique harmonioso. O resultado pode ser gráfico, ilustrativo, surreal, com muitos detalhes ou minimalista. Para ela, não se trata de ensinar a bordar, mas de um ato de amor, que promove a convivência, a qualidade de vida, o autoconhecimento, a preservação da memória das coisas e da natureza.
Ao atualizar o milenar e o tradicional, Sávia e as Matizes também nos fazem lembrar de coisas essenciais que vivem latentes em nós, do nosso próprio jardim interno pronto para ser desvendado, bordado.
Ontem, me peguei abrindo gavetas, fuçando armários. Onde estão as toalhinhas de minha avó? O que será que ela queria dizer com aquelas flores azuis em relevo? Por que um centro de mesa era sempre acompanhado de miniaturas igualmente bordadas? Quantas horas seus dedos grossos trabalharam com a delicada cambraia?
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