Lembro que no primeiro aniversário da minha filha mais velha, um casal de amigos a presenteou com um livro com um pato na capa. Era daqueles de plástico, para brincar no banho, fechado em uma embalagem. Dois dias depois, já com a certeza que havia passado o frenesi da festinha, recebo uma ligação preocupada deste amigo: “Você já abriu o livro!? Como é a história? Ninguém trata mal o patinho por ele ser diferente ou de outra cor!?”.
Preocupação completamente pertinente, afinal, as crianças pequenas descobrem muito pelos livros e, quando gostam de uma história, andam com o livro para cima e para baixo, olham as figuras, reinterpretam os desenhos, inventam histórias novas ou repetem a história original que ouviram. Os livros são uma das formas para que as crianças acessem as coisas do mundo; alguma teoria social cognitiva deve explicar isso com os requintes teóricos necessários.
Aqui, me interessa contar que, por meio da literatura infantil, consigo mostrar para minhas filhas uma realidade diferente da que vivenciamos. Morando no interior do Sul do Brasil – uma região predominantemente branca – são os livros que me ajudam a mostrar para as pequenas a diversidade racial e falar sobre preconceito. Tarefa complexa, mas essencial.
Uma menina pretinha que é vizinha de um coelho branco foi a porta de entrada para falar sobre as cores das pessoas. O livro intitulado Menina Bonita do Laço de Fita, de Ana Maria Machado, é um dos clássicos da literatura infantil brasileira. Foi largamente distribuído em escolas desde a década de 1980, quando foi lançado.
O livro tem um texto poético, engraçado e cativante. Na história, o coelho branco admira a menina preta que mora ao lado e diz que quer ser como ela ou ter uma filha que seja parecida com a vizinha. Ele pergunta para ela o que ela fez para ser preta e ela, como toda boa criança, inventa conselhos e dicas mirabolantes para que o coelho se pareça com ela. Tomar café, comer jabuticaba ou mergulhar num balde de tinta preta: obviamente nada disso dá certo. A mãe da menina intervém e explica ao bicho que a gente acaba sendo parecido com nossos familiares. O coelho se dá conta, então, que para ter uma filha da cor da menina bonita do laço de fita, terá de se casar com uma coelha preta, pois na família dele só havia coelhos brancos. Ele se casa e tem filhotes de todas as cores.
A obra já foi premiada várias vezes e já virou animação infantil. Não é nenhuma novidade no mercado editorial, mas o texto, com mais de 30 anos, permite, de um jeito simples, explicar sobre raça, cores, semelhanças fenotípicas e sobre miscigenação.
O livro já recebeu algumas críticas. As ilustrações mostram a mãe da menina, uma mulata, muito sensual e enfeitada, que seria o oposto da imagem de mães brancas retratadas em livros infantis. A página que mostra a ninhada de coelhos oriundos do casamento entre o coelho branco e a coelha preta exibe coelhos de todas as cores, mas nenhum preto mesmo, apenas dois marronzinhos.
Entre quase 50 livros infantis que temos em casa (a maioria foi presente ou herança de sobrinhos e filhos de amigos), lamento em dizer que são apenas esses dois que tratam da temática de uma forma mais direta.
As críticas, no entanto, não desmerecem a importância e o sucesso do livro. As crianças precisam estar cercadas por brinquedos, desenhos e livros que representem a diversidade da sociedade, só assim podemos ensinar sobre preconceito e desigualdade. E elas precisam aprender e falar sobre isso desde pequenas, só assim vão naturalizar o assunto. Falar sobre raça e cor não pode ser tabu, pelo contrário. As crianças brancas precisam saber que o racismo existe e que é necessário combatê-lo. As crianças negras precisam ser empoderadas e se reconhecer nos produtos culturais que consomem.
Aqui, os meus dois exemplares de crianças se divertiram muito com a história do livro e, depois de ler algumas vezes, percebi que elas repararam em suas próprias cores (“sou meio amarelinha, mas um pouco marronzinha, a vovó é bem marronzinha e o papai é branco”, disse a mais velha, quando perguntei sobre de que cor ela e a família eram). Engatei o Menina Bonita do Laço de Fita com outro livro bonito e poético que trata do mesmo tema: Meu Crespo é de Rainha, da ativista americana bell hooks. O livro fala sobre padrões de beleza e valoriza a beleza do cabelo crespo e cacheado. Foi lançado no final da década de 1990 e chegou ao Brasil em 2018.
Entre quase 50 livros infantis que temos em casa (a maioria foi presente ou herança de sobrinhos e filhos de amigos), lamento em dizer que são apenas esses dois que tratam da temática de uma forma mais direta. Embora outras histórias pincelem os temas como diferença e preconceito racial, são estas obras que são mais emblemáticas. Nada de novo no front, pois inúmeros levantamentos demonstram a necessidade de ampliar a presença dos negros nos variados produtos culturais. Para nossa sorte, uma série do novas obras, mais sensíveis ao tema, já fora ou estão sendo lançadas. O próximo da lista, aqui em casa, é Amoras, livro escrito pelo músico Emicida.
SAIBA MAIS
MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA – Ana Maria Machado
Editora: Ática;
Tamanho: 24 págs.;
Lançamento: 1986.
MEU CRESPO É DE RAINHA – bell hooks
Editora: Boitatá;
Tamanho: 32 págs.;
Lançamento: 2018.
Li as duas obras para crianças entre 2 anos e meio e 4 anos e o entendimento foi visível. A indicação das edições é que a leitura seja feita para os pequenos a partir dos 3 anos.
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Em tempo: é com alegria que volto a escrever neste espaço, depois de uma longa pausa. A maternidade foi uma reviravolta em minha vida e é absolutamente delicioso ter este tempo e este espaço para falar de minhas descobertas e impressões. Acredito que cuidar dos filhos é o trabalho mais importante do mundo, pois estamos criando as próximas pessoas, a próxima geração, o futuro. No entanto, a função é incrivelmente desvalorizada e invisibilizada. Mas estou aqui, em luta, apresentando o mundo para duas crianças, tentando equilibrar os dilemas e responsabilidades da vida adulta com o cuidado com duas filhotas e tentando apresentá-las ao que a nossa sociedade criou de melhor: a cultura. Seguimos!