Um dos livros infantis que mais suscitou conversas entre as duas pequenas humanas que residem aqui comigo foi o clássico da Ruth Rocha, O Reizinho Mandão. No livro, um menino mimado e mal-educado é o governante do local (qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência) e tem a chatíssima mania de mandar toda e qualquer pessoa calar a boca.
Ninguém pode falar nada que lá vem o chato gritando: “cala a boca!”. Ele disse isso tantas vezes e de forma tão contundente que, no reino da história, todos os habitantes param de falar, pois desaprendem como é que se faz. O menino chato e mandão então se vê numa “sinuca de bico”: fez o que queria e todos o obedeceram, só que o preço disso foi um silencio e solidão sepulcral.
Ele queria mandar todos calarem as suas bocas mas ao mesmo tempo não queria o silêncio estarrecedor… Ou seja, não queria arcar com a consequência do que pediu. A falação ele não gostava, a quietude também não Teve de viajar a um reino vizinho para tentar encontrar a solução para o problema. Um velho sábio lhe disse que ele teria que percorrer o reino atrás de alguma criança que ainda soubesse falar. Pois sim, a solução estaria nessas pequenas criaturas brilhantes que perpassam eras sendo pequenas criaturas brilhantes.
O reizinho mandão encontra um belo exemplar de criança que lhe diz a parlenda perfeita: “cala boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu”! E é com essa frase de ordem que o encantamento do silêncio se desfaz, os habitantes do reino voltam a falar, o reizinho chato some da história.
É natural que as crianças tentem fazer valer a própria vontade usando elementos da tirania: são imaturos, estão aprendendo sobre limites (e precisam ser ensinados). Cabe aos adultos mostrar que mandar em todos não funciona.
Em um texto que lembra cordel, ler o livro é quase cantar, pois os versos são todos ritmados. Começa dizendo que a história é “uma história que meu avô contava” – o que, nas crianças, já suscita a familiaridade com o texto – e termina sem grandes fechamentos, deixando a imaginação da meninada correr solta. Com texto altamente coloquial, as crianças compreendem a história e se atentam aos acontecimentos.
Emprestamos da biblioteca há cerca de 4 meses e lemos diariamente nas duas semanas em que o livro ficou em casa. Ficou gravado nas cabecinhas férteis das meninas que não dá para mandar nos outros (embora elas queiram e tentem…) e que mandar os outros “calar a boca” é coisa muito feia, pois todos temos o direito de falar.
Até hoje, quando tocamos no assunto do reizinho mandão, a história vem à tona: “era um príncipe chato”, “era um menino sem amigos”, “a menina salvou todo mundo que não podia falar”. Acho emblemático que seja uma menina que tenha salvado as pessoas e a narrativa me ajuda sempre como gancho para falar às crianças sobre fazer valer a própria vontade. A história diz muito sobre poder e democracia também, pudera, foi lançada pela primeira vez em 1978, no final da ditadura militar.
É natural que as crianças tentem fazer valer a própria vontade usando elementos da tirania: são imaturos, estão aprendendo sobre limites (e precisam ser ensinados). Cabe aos adultos mostrar que mandar em todos não funciona, que nunca serão feitas todas as vontades dos pequenos e que tomar decisões e colocá-las em prática sem o mínimo de racionalidade pode causar efeitos tão ruins quanto a “sozinhez” e o silêncio que afligiram o reizinho mandão. No entanto, é interessante que é também uma criança que, aos berros, desfaz as besteiras do reizinho. Ao mesmo tempo em que não queremos filhos tiranos, também não queremos criar pessoas sem voz, que não pensem por si mesmas ou que sejam facilmente manipuladas.
Os livros, ainda mais os que são engraçados e mostram personagens caricatos, são ferramentas muitos úteis nesse caminho de iluminação da criança à democracia. Em tempos como os que vivemos, O Reizinho Mandão deveria ser impresso em larga escala e distribuído, principalmente, no Planalto Central.
A autora
Ruth Rocha é uma autora de livros infantis reconhecida e premiada, com mais de duzentos títulos publicados e livros traduzidos para mais de 25 idiomas. Além de O Reizinho Mandão, escreveu outros dois livros nos quais aborda temática semelhante: O Rei que Não Sabia de Nada e Sapo Vira Rei Vira Sapo.
O REIZINHO MANDÃO | Ruth Rocha
Editora: Salamandra;
Tamanho: 40 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2013.
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