Por Mariana Sanchez*, especial para Escotilha
É sempre um pouco triste e trágico encontrar um cassete de Astor Piazzolla naqueles cestos de promoções do Mercado de San Telmo. Porque não deixa de ser incoerente isso de encapsular uma produção musical tão à frente do seu tempo em uma tecnologia obsoleta como essas fitas magnéticas de sessenta minutos — a despeito do bigodinho anacrônico do bandoneonista estampando sua capa de plástico.
Poucas figuras na história da música argentina levaram o conceito de vanguarda tão a sério quanto Piazzolla. Traidor do tango para alguns, renovador do tango para outros, é inegável sua contribuição para que o ritmo portenho por excelência rompesse com uma certa rigidez do compasso de dois por quatro e voasse mais livre, como só o jazz pode ser.
Mas este texto não é sobre Astor, e sim sobre seu neto Daniel, mais conhecido por essas plagas como Pipi Piazzolla.
Enquanto o primeiro tocava bandoneon e liderava um octeto, o segundo é baterista e comanda um sexteto, provavelmente o melhor ensemble de tango-jazz contemporâneo da Argentina. Fundado em 1999, Escalandrum tem oito discos lançados e uma carreira internacional impressionante, com direito a dividir o palco com lendas como Paquito D’Rivera e Chick Corea.
Em 2010, tocou em São Paulo durante o Bridgestone Music Festival, pouco antes de ser nominado ao Grammy Latino e de vencer o Prêmio Gardel de Ouro por seu álbum Piazzolla plays Piazzolla. Felizmente a banda também se apresenta com alguma frequência em Buenos Aires, e até agora já tive a sorte de assisti-los três vezes.

A mais especial delas foi no Boris Club, uma casa de jazz em Palermo com uma acústica perfeita e o tamanho certo para concertos intimistas. O lugar já havia sido palco para a gravação do disco ao vivo Vertigo, em 2013, mas naquela quinta-feira de maio de 2016 o sexteto de Piazzolla apresentaria um repertório diferente e algo inusitado, com releituras da obra de Wolfgang Amadeus Mozart por ocasião de seu 260º aniversário.
Transformar sonatas de um compositor austríaco do século 18 em peças jazzísticas na Argentina do século 21 parecia algo complexo, e era, mas já na execução do “Concerto para Piano Número 23” o arranjador e pianista Nicolás Guerschberg mostrou a que veio, trazendo uma versão cheia de frescor, leveza e criatividade.
Poucas figuras na história da música argentina levaram o conceito de vanguarda tão a sério quanto Piazzolla.
“Como vocês fizeram isso com Mozart? Venho de uma família que, como vocês sabem, respeita muito a tradição”, ironizou Pipi Piazzolla, referindo-se ao vovô iconoclasta. O entrosamento do grupo era total, da marchinha “Rondo alla turca” ao allegro inicial da quadragésima sinfonia, francamente desconstruída em sua métrica pela bateria de Pipi, culminando com uma louquíssima interpretação da mais-que-manjada “Eine Kleine Nachtmusik”, a serenata noturna.
Todos ali já tínhamos ouvido aquelas peças infinitas vezes em filmes, propagandas e esperas telefônicas, mas era como se fosse a primeira vez (e era), como se Mozart tirasse a indefectível peruca e desabotoasse os punhos do paletó para deixar seus movimentos fluírem com mais liberdade, sem medo de soar experimental.
Aquilo era o mais (im)puro e inflamado jazz fusion, baby. Divertido e lascivo como se deve ser. Cheio de parênteses musicais e pequenos solos internos entrecortados pelos aplausos do público, naquela dinâmica de improvisação tão própria dos jazzistas.
É como uma montanha-russa melódica, da catarse à calmaria: uma hora estão todos subindo juntos e coesos, para segundos depois caírem no abismo da virtuose em que é cada um por si, a cara vermelha do saxofonista-tenor resfolegando, o clarinetista que entorta o joelho para extrair uma última nota do instrumento enquanto o contrabaixista ali, ensimesmado e tranquilão, de olhos fechados curtindo a doideira.

Escalandrum fez uma leitura de Mozart que soube fugir do academicismo de forma exemplar, levando o termo musical “fuga” à literalidade, com infinitas camadas polifônicas sobrepostas. Tinha técnica, sim, mas também tinha verve (no fundo, “toda técnica sempre implica uma metafísica”, dizia Sartre, que via no ritmo de New Orleans a manifestação mais autêntica da liberdade existencial).
Os meses de preparo para compor os novos arranjos resultaram em apenas três shows públicos, mas a boa notícia é que o grupo também se reuniu para gravá-lo em estúdio, e segundo Pipi, o disco deverá sair ainda este ano.
Depois de tantas sonatas e serenatas, além de algumas suítes belíssimas do compositor argentino Alberto Ginastera — de quem Astor Piazzolla foi pupilo —, era justo que o sexteto de Pipi tocasse também alguns temas do avô.
Enquanto o velho Piazzolla fez algo impensável, como tocar um tango impossível de se dançar, o novo Piazzolla toca um jazz impossível de se ouvir sem chacoalhar o corpo todo, dos pés à cabeça. A começar pela cabeça descabelada de Pipi, que parece por vezes prestes a se desconectar do pescoço quando o baterista se lança a um daqueles solos catárticos, extraindo tudo do bumbo e do tom-tom para depois aterrissar as baquetas em suaves movimentos circulares no chimbau.
O gran finale ficaria por conta de uma versão estendida e absolutamente gloriosa de Adiós Nonino — a canção que Astor compôs para seu pai, de quem ganhou um bandoneon aos 8 anos de idade (seu primeiro, embora fosse de segunda mão). Ali, no entanto, era tocada por seu neto, uma das figuras mais proeminentes do jazz na América Latina hoje. Sair flutuando pela noite portenha era o só o que nos restava depois deste memorável concerto.
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