Um tomate é colocado no centro do picadeiro improvisado na Praça do Cavalo Babão e aos gritos contra todo o poder e toda hierarquia, os palhaços Turino & Batata Doce espatifam o fruto com seu martelo. Depois, fazem o mesmo com um mamão e uma melancia. Continuando o espatifamento de frutos, trazem dois melões com cabeças de patinhos de borracha, simbolizando o famoso Pato da FIESP. Aos gritos de “quebra, quebra” do público, batem forte nos melões cujo sumo voa em direção à plateia. Por fim, ao invés de frutos, um espelho é levado ao palco. O palhaço levanta seu martelo para quebrá-lo, mas uma força estranha não o permite.

Assim foi a cena final do espetáculo Vikings e o Reino Saqueado, da anárquica dupla da Cia Os Palhaços de Rua, de Londrina. O público, que contava com crianças de colo, jovens dividindo um tubão, adultos e idosos, gargalhou muito e também voluntariamente contribuiu para a caixinha dos artistas. Voluntariamente, repito, já que a peça fora apresentada na praça, sem bilheteria ou teto. Belíssimo reencontro entre mim e os palhaços, já que em 2015, ainda na faculdade de comunicação, os entrevistei para o documentário Fringe que eu acredito e as trocas entre nós foram muito boas.
Esta foi só uma das dezenas (centenas?) de peças abertas do Fringe, mostra paralela do Festival de Curitiba. Sempre acusado de elitização por manter 90% dos espetáculos no centro da cidade, o Festival também contou com peças em bairros periféricos como CIC, Boqueirão e Tatuquara. Apesar da suposta universalização, os espetáculos da Mostra Principal custavam até 75 reais.
De forma alguma julgo os preços ou tampouco quero desvalorizar o trabalho dos artistas. Muito pelo contrário, acredito que uma obra de arte dignifica a alma, o corpo, a mente e tem valor inestimável. Porém, é uma preocupação natural que um festival do porte deste, ainda mais com investimento público direto ou via lei de incentivo, atinja o mais variado espectro de pessoas. Doravante, não sou o único que pensa assim.
Findado o Festival de Curitiba e o Fringe, é inestimável o número de pessoas beneficiadas com os bilhetes arrecadados pelo Movimento dos Sem Ingresso, tampouco calculável o valor simbólico para o público e artistas.
Ainda estudante de teatro em 2004, Débora Cristina dos Santos precisava assistir o máximo de peças possível, pois prestigiar os trabalhos de outros artistas para quem estuda arte é também um processo de aprendizagem. Um belo dia, triste em frente a um teatro em que não poderia entrar, notou que um senhor tinha nove ingressos e usaria só um. Conversou com ele que prontamente os doou para Débora e os amigos da faculdade. Percebendo aquela possibilidade, ela uniu forças e criou o MSI – Movimento dos Sem Ingresso, que atua desde então.
Durante todo o festival de 2018, o MSI esteve em frente ao Memorial de Curitiba distribuindo ingressos que ficavam dentro de uma urna, um galão de água improvisado. O movimento conseguiu os bilhetes em contato direto com as companhias que doaram suas cortesias. A divulgação foi feita pelas redes sociais, com vídeos ao vivo todas as manhãs e durante o dia com os grupos de teatro que iam até lá entregar os bilhetes. Incansáveis, os revolucionários artistas do MSI passaram dias embaixo do pessegueiro em frente ao Memorial de Curitiba, saciando a sede de arte com seu galão de água cheio de ingressos.

Além da distribuição dos bilhetes, grupos se organizavam em frente aos teatros no horários das peças da Mostra Principal e caso lugares ficassem vazios até o início do espetáculo, as vagas eram liberadas aos não pagantes. Houve relatos de vaias (não incentivadas pelos organizadores do MSI) quando a entrada não foi liberada, o que foi suficiente para gerar reclamações e descontentamentos de alguns rasos produtores do festival.
Um dos momentos mais emocionantes do trabalho do MSI neste ano, segundo Débora, foi a ponte de comunicação que fez entre professores da rede pública e produtores de peças sem plateia. Grupos de alunos puderam prestigiar, alguns pela primeira vez na vida, um espetáculo de dentro de um teatro.
Findado o Festival de Teatro de Curitiba e o Fringe, é inestimável o número de pessoas beneficiadas com os bilhetes arrecadados pelo Movimento dos Sem Ingresso, tampouco calculável o valor simbólico para o público e artistas. A dúvida que fica é de onde vem o estímulo para tantos dias de serviços exaustivos com o intuito de distribuir bilhetes de teatro. Talvez venha da mesma força que não permitiu o palhaço quebrar a própria imagem refletida no espelho.