Se na última semana, usei a coluna para, através de relatos de mulheres, falar sobre a importância de campanhas como a #primeiroassédio (leia aqui), hoje saio de cena e me coloco na posição de ouvinte. Assume meu lugar, como parte da campanha #AgoraÉQueSãoElas, reforçando o posicionamento não apenas deste colunista, mas da Escotilha, em favor da luta pela igualdade de gêneros, a jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, editora e idealizadora da Escotilha, Maura Martins.
Na novela Jardim de Cimento, do grande Ian McEwan, quatro irmãos se veem obrigados a criar uma forma de sobrevivência, aos trancos e barrancos, após a morte dos pais. Algo inesperado acontece: frente à tamanha liberdade proporcionada pela ausência dos genitores, o menorzinho resolve que irá, a partir de agora, apenas se vestir com roupas femininas. Em certo trecho, Julie, a irmã mais velha, do alto dos seus 17 anos, explica ao irmão de 15: “você acha que é humilhante ter a aparência de uma garota porque acha que é humilhante ser uma garota. As garotas podem vestir calças jeans, cortar o cabelo curto, usar camisas e botas, porque é bom ser um garoto, para uma garota é como uma promoção. Mas, na sua opinião, um garoto se parecer uma garota é degradante porque, secretamente, você acredita que ser uma garota é degradante”.
Estas frases nunca saíram da minha cabeça. Menina, menino. Será que é possível reproduzir, por meio de palavras, o que sente quem pertence àquele gênero? Em meio a tantas narrativas que hoje vem a público sobre, afinal, o que significa ser mulher em pleno 2015, talvez as respostas possíveis se tornem batidas, senso comum. Pouco importa: o que importa é que as falas venham à tona. Se ser menina é ainda um enigma para muita gente – assim como a recíproca também é verdadeira, não podemos esquecer: temos que discutir sobre o que é ser homem no mundo de hoje -, precisamos celebrar que as falas hoje se proliferem, para, quem sabe, significarem alguma mudança no mundo que restará para nossas filhas e filhos (pra não fugir do clichê: água mole em pedra dura…).
Em O Jardim de Cimento, ao final do diálogo com seu irmão, Julie arremata, sabiamente: “secretamente, você adoraria saber como se sente uma garota, não?”. Como um brinde ao leitor que tem esta curiosidade, tento reproduzir em palavras um pouco da experiência de ser uma garota.
Pois bem. Ser uma garota é sempre atravessar a rua para não passar na frente da construção em que pedreiros gritarão alguma bobagem a você. Não falo de cantadas: apenas por ser mulher, está propensa a ouvir qualquer tipo de piadinha. É aprender a não ouvir toda vez que um carro cheio de moleques passa e xinga alguma coisa em sua direção. É apenas se sentir realmente segura nestas situações quando um homem está ao seu lado (afinal, importunar a mulher de alguém parece mais grave que importunar uma mulher sozinha). É automatizar a submissão como parte inerente da vida das mulheres.
Ser uma garota significa entender que mulher tem passado (geralmente negro) e homem tem história; que homem que muda de humor é intempestivo, tem personalidade forte, mas mulher está sempre de TPM, quando não está histérica. É ver que, mentalmente, muitas mulheres costumam concordar com estas lógicas, sem notar.
Ser uma garota é ser criada, desde pequenininha, a ser profissional e não depender financeiramente de homem algum, como aconteceu com nossas mães. Se, em outros tempos, mulher que queria trabalhar era malvista, hoje, não priorizar a carreira é crime inafiançável: é acomodada, dondoca, encostada. Ser uma garota significa dedicar-se arduamente para consolidar-se em uma profissão e sentir na pele que, com a biologia, não tem negociação. É ser mãe cada vez mais tarde.
Ser uma garota é que esperar que o coro de vozes femininas que hoje reverberam nas redes sociais consiga penetrar para além da barreira do discurso.
Ser uma garota é reconhecer que, da mesma forma, com o mercado do trabalho também não há negociação. É ver que o mundo exige as mulheres “funcionais”, que se dediquem à sua profissão, mas não percam a sua “essência” familiar. É notar que, nos negócios, não há adaptações possíveis para que estes dois mundos (entendidos erroneamente como opostos) coincidam de forma minimamente harmônica. É ser, de maneira implícita, culpada pelas frustrações inevitáveis em ambas as esferas. Afinal, teve filho pra quê? Não saiu do emprego por quê?
Ser uma garota é aprender a reconhecer a diferença nos pequenos detalhes, como nos colegas de trabalho que não olham nos olhos em reuniões e preferem se reportar sempre aos “pares” masculinos. É ser cobrada para manter postura profissional, rígida, exigente, objetiva – ou, como se dizia antigamente, “agir como um homem”, “bater o pau na mesa” – mas, ao manter esta postura, ser criticada por motivos pessoais: não tem coração, é mal comida, não tem compaixão, não se importa com a família dos outros, está “masculinizada”.
Ser uma garota é ser sobrecarregada de discursos sobre independência, enquanto se é assoberbada por narrativas em que as mulheres modernas, livres e que vivem la vida loca, a la Sex in the City, só encontram verdadeira redenção ao lado de um homem.
Ser uma garota é esperar que o coro de vozes femininas que hoje reverberam nas redes sociais consiga penetrar para além da barreira do discurso, pois, no discurso, ninguém é machista, racista ou homofóbico, todo mundo é gente do bem (mesmo os machistas, racistas e homofóbicos). É esperar que toda esta discussão sirva, de fato, para alguma coisa, além de associar um selo de “tolerante” em todos os que abraçam esta causa.
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