Todo boteco que se preze é democrático, já diziam os primeiros índios pinguços da história destas Américas, que se reuniam para tomar cauim, criticar o técnico da seleção de arco e flecha e arquitetar o impeachment do cacique – golpistas não são exclusividade dos tempos modernos. Agora, é importante deixar claro que boteco que é boteco é todo trabalhado na ausência de uma estética definida. Esqueçam rótulos vintage de marcas de cerveja nas paredes, cadeiras de madeira com símbolo da Bohemia pirografado e qualquer coisa gourmet no cardápio. Aliás, esqueça cardápio. O máximo que você conseguirá é um quadro em poliestireno com letras plásticas removíveis. Isso na melhor das hipóteses, é claro. A maioria dos donos de boteco guarda a lista do que comercializa e seus preços na memória. E só.
Por sinal, esqueça também esta história de “boteco”. Se na fachada estiver ali “Boteco do Quim”, fuja. Boteco que é boteco chama “Bar do Zé”, “Juca Lanches e Salgados” ou “Padaria Doces Sonhos”, afinal, nem português é de ferro, amigo. Está certo que ali no início eu disse que havia uma ausência de estética e já defini um sem número de regras para uma verdadeira birosca. Juro que a intenção foi apenas enfatizar que, em um estabelecimento que honra o espírito democrático da cerveja gelada, a única ostentação é uma TV 43 polegadas com Premiere Futebol. A diferença é que ninguém ali é fã de futebol moderno. Pode ficar tranquilo que depois do 1 a 0 todo mundo vai aceitar que o “professor” coloque uns três beques na retaguarda, dois cães de guarda como volantes e só um atacante brucutu lá na frente que é para disputar as bolas alçadas na área.
Uma rápida olhada e notará que todo boteco tem seus personagens. O “Chaminé”, que está sempre com um copo, em pé, da porta do bar para fora, com seu Parliament ou Hilton à mão. Temos também o “Zé de Abreu”, já com uns anos nas costas, quase sempre muito magro, barba branca por fazer, que aborda todos para que ouçam falar algo sobre política. Um verdadeiro e eterno comunista de birosca. O “Zagallo” é um que está sempre no balcão, o “amigão” do dono do respeitável bar. Sem um time definido – prefere quase sempre se colocar como um amante do esporte bretão -, se põe sempre a filosofar a rotina do 4-4-2, 4-3-3, carrossel holandês, o Eusébio dando show na seleção portuguesa de 1966. Para não perder a viagem, sabe repetir a equipe do Operário de Ponta Grossa de 1961, saudoso ano em que quase venceu o Coritiba nas finais.
Em um estabelecimento que honra o espírito democrático da cerveja gelada, a única ostentação é uma TV 43 polegadas com Premiere Futebol.
Não podemos esquecer do sempre saudoso “Rui Chapéu”, o senhor que abre e fecha o bar, não por ser dono, mas por passar o dia inteiro “em cima” da mesa de sinuca, fazendo “a rapa” na turma, em especial os jovens que passam por lá. Como a regra é quem perde paga, raramente gasta um tostão sequer por lá.
É preciso salientar que birosca não passa por reforma, no máximo faz um puxadinho para oferecer mais um banheiro, “porque a patroa disse que dividir banheiro com homem é o fim dos tempos”. Torresmo, ovo de codorna, amendoim japonês, azeitona verde, carne de panela, pastel de carne e risoles de palmito. Porque rissole é muito afrescalhado para um boteco. O mesmo vale pra hambúrguer, porção de fritas com queijo e cheiro verde, isca de peixe e outras iguarias que vendem para você como “comida de boteco”. Entenda, boteco não tem comida, tem tira gosto.
Sinto que meu apetite até se abriu com esse papo todo. Vestirei as havaianas de sola branca e tiras azuis, minha camisa do “Curintia” e vou partir para a primeira rodada de rabo de galo. A carne é fraca e São Jorge me protege. Saravá.