Outono/Inverno
Hoje é meu primeiro dia. Fui colocada em um lugar iluminado, relativamente espaçoso, porém pouco arejado. No momento estou só, mas ouvi conversas paralelas dizendo que devem chegar companheiras. Entretanto, neste momento em que ninguém me faz companhia, não me sinto só, estou sempre bem vigiada. Há um toque de voyeurismo em me ver assim, cercada de câmeras.
Pela primeira vez reparo que pessoas vivem a me olhar. Algumas param, olham profundamente, como que procurassem um mínimo defeito, algo que possa ser usado contra. Em geral, percebo que todos se olham depois de me admirar. Sinto que gero uma autorreflexão nas pessoas, misto de me querer e me odiar, nunca sei ao certo em qual medida. Das tristezas, a maior é não conseguir ver meu próprio reflexo. A vitrine, sempre tão bem limpa, chega a parecer inexistente, tamanho zelo para que eu seja uma representação perfeita do termo “impecável”.
Hoje me vestiram um tailleur que, noto pelo toque do tecido em minhas fibras, veio da Índia, fio 100% algodão. Mulheres se amontoam diante de mim. Flashes, selfies… todas me desejam. Sou a definição do que a mais alta-costura determinou que elas nunca fossem, mas desejassem ser. Ontem uma senhora, ao passar em minha frente, apontou o dedo médio. Inveja define.
Primavera/Verão
Chegaram visitas. A princípio pensei que viriam passar apenas uma rápida temporada, mas a moça que sempre dá os retoques no meu modelito já deixou escapar que terei companhia.
Chegaram visitas. A princípio pensei que viriam passar apenas uma rápida temporada, mas a moça que sempre dá os retoques no meu modelito já deixou escapar que terei companhia. Algo sobre uma nova parte da coleção Primavera/Verão. Consegui enxergar de relance minha companheira. Vejo que seus traços são mais finos que os meus, que foi concebida tendo como parâmetros um tal de “novo padrão”.
Já não gosto dessa história de dividir o espaço que antes era só meu. Procuro compreender por que as roupas que são direcionadas a esta outra ocupante da área nobre da loja são mais coloridas e decotadas que as minhas. Será que já se esqueceram quem reinou aqui nos últimos meses? Creio que sim, até as selfies ficaram escassas.
A vitrinista vive o dia falando que é culpa de uma tal crise. Mas, se a crise existe, por que levaram até o maiô de quem dividia espaço comigo? Na última troca de roupas, comentou em voz alta com sua colega de trabalho: “Viu como essa aqui é mais ‘cheinha’? Quem gosta de carne, meu amor, é churrascaria. Tá na hora de sair da frente”. Achavam que manequim não tinha sentimentos?
Não demorou e fui parar no final da loja, escondida sob roupas da penúltima coleção. Casacos de lã, conjuntos que não combinam, peças démodées, normalmente sendo utilizada como apoio do sobrepeso de uma vendedora, principalmente as novatas, não acostumadas com o padrão da alta-costura. Ainda por cima ganhei um selo “descartável”, não sem antes ouvir da estoquista: “É ‘fiota’, esse é o ciclo da vida. Ou você faz parte ou está à parte”.