Acorda e desliga o despertador que insiste em tocar. A luz que penetra pelos espaços que a cortina não é capaz de cobrir começa a tomar conta do quarto. O ritmo é sempre o mesmo antes de qualquer exame médico, daqueles que levam meses a serem marcados, culpa da imbecilidade dos homens em se achar imunes aos males. A lentidão com que joga duas mãozadas de água na cara indicam o tédio matinal. Limpa os dentes e, ao fim, retorna a escova para a caneca separada para o duro fardo de resguardar a lavadora dos dentes.
O café é preto e o pão é com manteiga. Ou margarina. Tanto faz, você obviamente usará o que tiver, e o que terá será sempre o mais barato pelo simples motivo de que aprendeu que é preciso economizar em tempos de crise. Enche a caneca de café com a mesma lentidão que completa o bocejo que denuncia a noite mal dormida. Liga a tevê; vê o jornal; não gosta do que vê. Xinga o apresentador, aquele infame portador de más notícias. Começa a notar os primeiros indícios de raiva. Vai ao médico só e isso o emputece.
A rotina da ida ao médico é sempre solitária. Carrega consigo a imprevisibilidade. E você detesta não ter o controle sobre o futuro – ou tem medo dele. Até o momento que você atravessa a porta de casa, entra no carro, sobe os andares e adentra o consultório médico, tudo está na mais pura normalidade. Você é saudável, está com a tez ligeiramente bronzeada – nos limites do verão curitibano – e tem se alimentado dentro dos requisitos básicos para uma dieta equilibrada. O prato está sempre colorido, e até aquela beringela que você não digeria quando criança é traçada sem pensar duas vezes.
A rotina da ida ao médico é sempre solitária. Carrega consigo a imprevisibilidade. E você detesta não ter o controle sobre o futuro.
Tirando os armários e mesas estrategicamente escolhidos na cor cinza claro, tudo naquele consultório é de um branco ascético, com iluminação ofuscante. Na maioria dos casos, o ar condicionado está ligado, a TV exibe mais uma edição do Mais Você, as principais revistas do país estão dispostas sobre um revisteiro que mais lembra um cabide para calças e a secretária do médico preenche a agenda lotada. As doenças são implacáveis, não dão folga nem durante momentos de crise econômica, e por isso é preciso organização. Primeiro os que não têm sintoma algum, depois os que estão em estágio avançado de doença, em seguida os que estão à beira da morte para só então, se houver tempo, os que já atingiram estágio avançado de putrefação.
Com a chegada de outros pacientes, você passa a reparar mais na sua roupa, chega a se questionar se a escolha foi acertada para a ocasião. Seu tênis está um pouco sujo por fora, aquele chiclete pisado há duas semanas ainda permanece como um cadáver na sola do sapato. Em tempos difíceis, a crise vira justificativa para a preguiça. Você passa a mão no rosto e sente a barba por fazer, cheia de falhas que tornam o crescimento dela um tanto disforme. Tem a sensação de que todos estão reparando em você.
Nunca entende se é sorte ou não a secretária dizer neste exato instante que você pode entrar na sala do médico. Inicia-se, então, uma sensação de completo mal-estar. Você está diante de um paradoxo. Naquele momento você é o gato do Schrödinger, uma experiência, um número, uma dor, um sintoma, um indício, você é a vida e a morte, a inconstância e a permanência, tudo e nada. Da primeira à última palavra do médico você está refém do imponderável.
Ao fim da consulta, você se faz a mesma pergunta de sempre: será que eu fiz mal em não falar sobre aquele sintoma? A resposta também é sempre a mesma: não! Nada mais certeiro que o prolóquio “de médico e louco todo mundo tem um pouco”.