H. tinha 9 anos. Ela costumava brincar sempre próximo a portaria do prédio onde morava. Até ali, muito provavelmente nunca tinha notado nada fora do comum. Certo dia, envolvida com suas brincadeiras (afinal, típico de uma criança), foi chamada pelo porteiro que dizia querer lhe falar algo. Natural de uma criança chamada por um adulto, a primeira coisa que lhe passou pela cabeça foi “vou levar uma bronca”. Ao entrar naquele pequeno espaço, um três por quatro abafado, escuro, apenas com uma tela da câmera de segurança do condomínio e um rádio tocando músicas aleatórias, dificilmente lembradas neste momento, seu braço foi segurado pelo homem, que dizia o quanto ela era bonita. Naturalmente que ela não compreendia ali, naquele momento, o que se passava. Com medo, foi embora e decidiu que ali não brincaria mais.
O primeiro beijo de M., aos 13, foi com um rapaz de aproximadamente 18 anos. Das experiências e ideias desordenadas e engavetadas, não virou pó a certeza que, ali, tudo aconteceu por pura pressão dos amigos, que na naturalidade da comunhão em um churrasco, também acreditavam ser normal o julgamento moral de quem não age conforme o grupo. Ela não queria, não apenas o beijo, mas também estar ali. A ideia de beijar alguém que nunca antes tinha visto na vida não lhe despertava interesse algum, apenas uma sensação incrivelmente desconfortável.
A falta de maturidade ali e os anos que se passaram fizeram com que não tivesse a certeza se eram dedos ou o pênis do sujeito.
Com 15 anos, ao passar pelo metrô Paraíso, L. e mais quatro amigos iam sentido Consolação. Eram cerca de dez horas da noite e o hábito de andar por este trajeto criava uma sensação de segurança. De repente, uma sensação estranha, como se alguém lhe cutucasse. Ao olhar para trás, notou a presença de um homem, idade obviamente indefinida, não me lembro de alguém numa situação dessas pedir nome, RG e comprovante de residência. A falta de maturidade ali e os anos que se passaram fizeram com que não tivesse a certeza se eram dedos ou o pênis do sujeito. O asco de lembrar da sensação não se apagou, tampouco a certeza de que aquilo lhe havia causado uma enorme vergonha de seus amigos, uma culpa inerente a situação.
Alguns anos atrás, I. caminhava próximo de sua casa. Eram duas quadras. Pelas medidas padrões, cerca de 200 metros a separavam de sua casa, seu lar, o porto seguro para qualquer ser humano. Com um pouco mais de maturidade, adquiriu o hábito de andar com fones de ouvido. Já que lhe faltavam poderes que fizessem com que as palavras não lhe fossem proferidas, que, ao menos, as notas musicais criassem uma barreira imaginária entre a ponta da lança de um assédio e seu direito em ser mulher, para ela e mais ninguém. Obviamente, nem sempre a música é alta o suficiente, mas parece disfarçar a dura realidade que a forçou a entender que uma mulher nunca sabe o que um homem pode fazer.
Iniciativa do Think Olga identificou que a média de idade do primeiro assédio sofrido por uma mulher é de 9,7 anos.
A cada 100 mil mulheres, seis morrem vítimas de conflito de gênero.
19% das mulheres com idade acima de 16 anos já sofreram algum tipo de agressão. Uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil.
O primeiro assédio geralmente não é o último.
Quase todos os relatos terminaram em silêncio, vergonha e culpa.
Infelizmente, as histórias contidas nesta crônica são reais.