– Sabe a Cláudia?
– Que Cláudia?
– Aquela, com carinha de puta, do almoxarifado…
– Hum… Não tô lembrado.
– Mano, aquela com uma cara de quem tem Síndrome de Down; cabelo pixaim; vem trabalhar com umas roupas que parecem de mendigo; quadril de hipopótamo…
– Ah, tô ligado! Porra, por que não falou logo? Claro que sei! A turma lá da conferência chama ela de coxinha humana.
Não sei exatamente quando isso surgiu, mas em algum momento na história da humanidade decidimos que a melhor forma de nos referirmos a alguém é procurando elencar o que, aos nossos olhos, sejam suas piores características. Lúcia, artista plástica, escritora e doutora em História da Arte se torna “a magricela pescoçuda com pincel”; João, a bichinha pão com ovo com voz de menininha; Gustavo, o gordo branquelo que parece o Stay Puft.
Perdemos nomes, qualidades, potencialidades. Somos colocados em uma lista sem qualquer identidade, unidos pelo humano fato de sermos quem somos. Não seriam nossas diferenças a razão maior para querermos conhecer ao próximo? Chego a pensar que, inconscientemente, queremos encontrar a gênese da distorção no outro, de forma que continuemos mascarando nossas próprias imperfeições.
“Somos singulares demais quando necessitaríamos ser mais plurais. Infelizmente, nem tudo se resume a flexões gramaticais de número.”
Não é apenas uma questão de refletir sobre o bullying – já que a agressão moral, verbal ou física é muito mais representativa do que odiamos em nós mesmos-, mas sim a evidência de que viver em sociedade já não nos interessa. Gostamos do gueto. Não o que esta à margem dos processos humanísticos, mas aquele onde nossa boçalidade é permitida, quando não reverenciada.
Também não enxergo o mundo sob a ótica do politicamente correto, frase mais utilizada em tom crítico a quem se opõe às distorções da vida, do que como norte de nossas relações. Acredito, talvez inocentemente, que precisamos nos conhecer, aceitar e amar antes de entrarmos em contato com outro ser humano. Não que isto vá mudar o mundo da água para o vinho, mas quem sabe impeça que, dia após dia, reproduzamos e introjetemos nossas frustrações na autoestima alheia.
Lembro que minha mãe sabiamente disse, em um desses diálogos despretensiosos que tivemos ao longo da vida, que se nossa mente tivesse um alto-falante, provavelmente viveríamos corados, envergonhados pela pequenez de nossos mais íntimos pensamentos. Creio que hoje, na roda louca das voltas do mundo, fico corado eu por pensar que o mundo deveria ser diferente. Somos singulares demais quando necessitaríamos ser mais plurais. Infelizmente, nem tudo se resume em flexões gramaticais de número.