Atuei por cerca de dez anos como publicitário, e uma das coisas que mais me causava frustração na carreira era ver como, enquanto ciência da comunicação e também ferramenta de transmissão de informações, a publicidade pouco agia em favor da quebra de paradigmas e estereótipos. Na verdade, na maioria dos caso, fazia o favor de alimentá-los.
Eis que nas últimas semanas me vi frente a um comercial que me chamou a atenção. Curiosamente, o comercial de uma marca nacional de cosméticos e perfumes não mostrava um beijo entre pessoas do mesmo sexo, apenas deixava nas entrelinhas que se tratavam de casais. Não demorou para que caísse na malha fina do conservadorismo cristão, fiscalizador da vida alheia. Fato semelhante ocorreu com a novela da Rede Globo, Babilônia, que precisou ser readequada ao paladar azedo dominante, hétero e cristão.
Cresci em uma família onde o contato sempre foi algo primordial no estabelecimento de nossa intimidade e identidade familiar. Sempre foi costumeiro, especialmente entre meu pai e eu, a troca de beijos e abraços fartos. O mesmo eu assistia entre ele e meu avô. Havia algo muito especial nesse cenário, mesmo que eu não tivesse ainda idade suficiente para compreender.
Durante os primeiros 17 anos que convivi com meus pais, bom dia, boa tarde e boa noite eram motivos mais que suficientes para que nos entregássemos na mais pura e completa demonstração de carinho.
Em muitas culturas o beijo é repleto de significados. Na Idade Média, por exemplo, o beijo era uma demonstração de status na sociedade. Os súditos de um rei deveriam antes beijar seu anel, seu manto, suas mãos, ou mesmo o chão. Foi apenas no século XVII que os homens acabaram com o hábito de beijar uma pessoa do mesmo sexo, sem afeto envolvido.
“Cresci em uma família onde o contato sempre foi algo primordial no estabelecimento de nossa intimidade e identidade familiar. Sempre foi costumeiro, especialmente entre meu pai e eu, a troca de beijos e abraços fartos.”
No Império Romano, beijos eram comuns no cumprimento entre amigos e familiares, além, é claro, do beijo na mão do Imperador. Mesmo na Igreja Cristã o beijo assumia um valor simbólico, uma transferência de espírito entre duas pessoas.
Mas então, o que tanto espanta a legitimação do próximo? Quando olho acima de meu próprio ombro, por vezes tenho a sensação de que somos atores, presos na representação de nossa própria mediocridade, fazendo dela nosso discurso, nossa representação social, nas quais nós, as pessoas, damos sentido enviesado ao mundo e as nossas próprias ações. Logo, vivemos uma distopia, um mundo disforme no qual o autoritarismo de nossas limitações dominam nossas relações.
Talvez seja difícil compreender como o atentado a aceitação do outro age contra a construção do “eu”. Os filósofos, psicólogos e escritores Bronwyn Davies e Rom Harré, em sua obra Positioning the ory: moral contexts of intentional actions (1999), abordaram a construção do eu como uma questão sempre aberta, cujas respostas dependerão das posições assumidas e das histórias que escolhermos para dar sentidos as nossas vidas e as dos outros. Tomar partido me parece, ao menos do alto de minha pequenez, o início mais sincero de dar voz a quem precisa. Aos meus amigos, à comunidade LGBTS e ao meu pai, meu mais sincero e carinhoso beijo.